31 maio 2017

AS CAIXAS DE RESSONÂNCIA CÁ DA PARÓQUIA

O Wall Street Journal, que hoje tanto elogia Portugal por ter «emergido como uma estrela do mercado das obrigações» (acima), é aquela mesma publicação que há sete meses o havia considerado «propenso a uma nova crise da sua dívida pública» (mais acima), e em que um dos seus editores escrevia, ainda há dois meses e meio, que o país se prefigurava como um «problema potencial na crise da dívida da eurozona». O Wall Street Journal é, manifestamente, um jornal plural, onde os seus colaboradores - Patrícia Knowsmann, Jeannette Newmann, William Watts - não têm receio nem complexos de se contradizerem. Exemplo diferente é o da imprensa doméstica que, apesar de leitora atenta do que se vai publicando naquele jornal, parece só se decidir a fazer eco daquilo que por lá aparece publicado quando se enquadre com o seu discurso político. A notícia favorável de hoje, por exemplo, têmo-la que a ler publicada no Jornal Económico, enquanto as desfavoráveis, a de há sete meses foi objecto de publicação no Expresso e a de há dois meses e meio, no Observador. Este último jornal não está interessado em dar relevo a notícias como a de hoje... Mas o mais triste de tudo nem sequer são estes indícios de tentativa de manipulação da opinião pública, é o método, é a atitude paroquial de invocar o que se escreve no Wall Street Journal como argumento em proveito da própria causa, quando as boas opiniões domésticas costumam estar muito mais bem fundamentadas do que as dos correspondentes estrangeiros.

NÃO DEIXE QUE A VERDADE POSSA PREJUDICAR O QUE PARECIA TER SIDO UMA EXCELENTE «INVESTIGAÇÃO» JORNALÍSTICA

A 31 de Maio de 2005, numa revista improvável de moda e mexericos (a Vanity Fair), esclarecia-se um mistério com mais de trinta anos: a identidade daquele que fora alcunhado de Garganta Funda durante o Caso Watergate, a fonte da administração que não só fornecera aos dois jornalistas do The Washington Post os dados preliminares para a sua investigação, como até os orientara no sentido em que deveriam prosseguir essa investigação que depois, de escândalo em escândalo, acabou por culminar com a demissão do próprio presidente Richard Nixon em Agosto de 1974. Considerada durante décadas a causa célebre do jornalismo, a revelação da identidade de quem estivera por detrás do processo, Mark Felt, que era nada mais, nada menos, que o nº 2 do FBI na época, veio estragar toda a limpidez da que fora a narrativa (épica!) durante as três décadas que se haviam sucedido ao Caso Watergate. Afinal a fonte, Mark Felt, tinha as suas causas pessoais para detestar Nixon, Mark Felt também tinha tido os seus problemas com a lei no exercício do seu cargo no FBI (a respeito de entradas em domicílios sem estar provido do devido mandato judicial - precisa e ironicamente o mesmo que acontecera no episódio do edifício Watergate que dera o seu nome a todo o caso). Em suma, se exposto, Mark Felt era frágil, podia tornar-se num alvo de uma campanha de descredibilização (conduzida pela administração Nixon) caso se soubesse publicamente a sua identidade. Curiosamente, com esta revelação descobriu-se posteriormente que a sua identidade como Garganta Funda viera provavelmente a ser descoberta pela administração Nixon, mas que nessa fase já o escândalo saíra do âmbito da imprensa e passara para o âmbito político do Congresso, quanto neutralizar a pessoa de quem o desencadeara se tornara tarefa supérflua. Mas o mais curioso e que não me canso de evocar foi o que (não) aconteceu de 2005 para cá, depois da revelação da identidade de Mark Felt. O conjunto da comunicação social, a começar, obviamente, pela norte-americana, noticiou a dita identidade mas sem se dispor a extrair do facto as naturais e devidas consequências, nomeadamente rever o que fora a narrativa do Caso Watergate nas três décadas precedentes. Não se tratou de uma luta do bem (os jornalistas impolutos) contra o mal (os políticos corruptos). Houve outros interesses muito mais importantes do que os deontológicos para que no The Washington Post se preservasse por tanto tempo do conhecimento do público a identidade de Garganta Funda. A verdadeira verdade é que o Caso Watergate começou por ser uma questão pessoal entre duas pessoas muito pouco recomendáveis (Nixon e Felt) e os responsáveis do jornal tiveram mais de trinta anos de oportunidade para que isso fosse sabido e nunca o fizeram.

A VOLTA À GÁLIA (32)

As salsichas de Tolosa que despertam a gulodice de Obélix são salsichas frescas de porco como as da embalagem da fotografia abaixo.

30 maio 2017

OS DESEJOS...

Um fenómeno que tem também contribuído para uma certa pacificação da vida política portuguesa é a criação de uma proximidade no que são as expectativas dos governantes e as dos governados. Há as comuns, como a selecção e o Salvador, mas é claro que nem sempre as expectativas são as mesmas e nem sempre acreditamos que as expectativas são para aparecerem satisfeitas, como será o caso dos desejos manifestados hoje por Marcelo e Costa a respeito do comportamento futuro das agências de rating, em dois artigos publicados no Observador.
Mas é até o lirismo justiceiro daquilo que ali é desejado por eles acaba por aproximar o cidadão comum dos dois governantes, pois esperar uma justiça rectificativa da Moody's, da Standard & Poor's ou da Fitch assemelha-se a esperar que este mesmo Observador que publica esses desejos se atrevesse a despedir colaboradores prescientes como João Marques de Almeida (acima) ou então que a SIC Notícias transferisse aqueles programas infalíveis sobre economia de José Gomes Ferreira para as mesmas madrugadas profundas em que a estação transmitia os de José Pacheco Pereira.

A PROCLAMAÇÃO DA INDEPENDÊNCIA DO BIAFRA

Há cinquenta anos era proclamada a independência da República do Biafra. Ao longo da década, o continente africano fora e continuava a ser atravessado por proclamações de independência mas esta era subtilmente diferente das outras, porque as fronteiras do novo país não respeitavam as que haviam sido herdadas da configuração colonial. Numa abordagem lírica, o gesto poderia ser encarado como a expressão dos povos recém emancipados de África a traçarem as fronteiras naturais dos seus estados. Numa abordagem cínica, constatava-se que, como acontecera com o separatismo catanguês, essas pulsões só ocorriam em regiões que se mostravam ricas em matérias primas de interesse para as potências - o petróleo no caso do Biafra. Mas, para impedir que o princípio de autodeterminação dos povos se aplicasse aos países africanos, onde a consciência nacional se cingia então a uma ínfima elite, houve que travar uma custosa guerra civil que se arrastou por dois anos e meio. Repare-se como na informação os assuntos têm sempre uma importância relativa: com a actualidade de então dominada avassaladoramente pela Crise israelo-árabe (que iria transformar-se, daí por uma semana, na Guerra dos Seis Dias) o assunto só merece um apontamento discreto de página interior no Diário de Lisboa desse dia (abaixo).

A VOLTA À GÁLIA (31)

29 maio 2017

ORA VÃO LÁ FAZER O VOSSO TRABALHO COMO DEVE SER...

Vai para aí uma grande celebração por causa da presença do marido do primeiro-ministro luxemburguês numa fotografia de conjunto dos cônjuges dos chefes de estado e governo que estiveram presentes na cimeira da NATO que teve lugar há uns dias em Bruxelas. O que eu gostaria de ter visto era, além da carneirada do costume, algum órgão de informação que, na continuidade, tivesse desenvolvido apropriadamente o tema, já que não foi esta a primeira vez que um marido teria tido a oportunidade de aparecer nestas fotografias de conjunto - de memória, estou a lembrar-me que o potencial pioneiro terá sido Denis Thatcher, marido de Margaret, a primeira-ministra britânica (1979-90). E esse terá sido só o primeiro de vários casos de mulheres casadas que foram chefes de estado e de governo de países da NATO e cujos maridos poderiam ter aparecido em tais cerimónias. Mas não é só isso. Porque se o caso for, por outro lado, o de destacar a inclusão de um cônjuge do mesmo sexo, então já existirá o precedente da antiga primeira-ministra da Islândia, Jóhanna Sigurðardóttir (2009-13), que se casara com a sua companheira de décadas Jónína Leósdóttir em 2010. Coisa diferente, para as aparências, será o de descobrir se qualquer deles (Thatcher ou Leósdóttir ou qualquer dos outros maridos) se terá prestado ao frete de ter acompanhado o cônjuge a essas cimeiras, mas para isso é que a imprensa tem aquela insuperável vantagem de possuir um arquivo de fotografias. Porém, mais uma vez, nem a bem do rigor, nem sequer em prol da esfusiante causa LGBT (no caso, a facção L), houve quem se dispusesse a produzir uma notícia um bocadinho mais aprofundada.

A VOLTA À GÁLIA (30)

Goscinny não viveu para apreciar a analogia mas as celebrações do centurião romano nesta prancha (Vitória! Vitória! etc...) fazem-me lembrar um twitter de Donald Trump a celebrar factos alternativos.

28 maio 2017

A VOLTA À GÁLIA (29)

E, por mais uma vez, a viagem a pé de Massilia (Marselha) a Tolosa (Toulouse - 400 km) é coisa de uma só jornada com uma pernoita, ainda que em local funesto (...para os romanos).

AS BODAS DE DIAMANTE DE UM ACONTECIMENTO QUASE TOTALMENTE IRRELEVANTE

A 28 de Maio de 1942 o México declarou guerra aos países do Eixo. Quem apreciasse o cabeçalho da edição do jornal daquele dia não adivinharia que nos três anos seguintes, até ao término da Segunda Guerra Mundial em 1945, a participação militar do país resumir-se-ia a um esquadrão de aviação de caça com 25 aparelhos e 30 pilotos, num total de 300 efectivos engajados. É daqueles casos em que o melhor é mesmo valorizar a atitude.

27 maio 2017

MARX, ENGELS, LENIN, STALIN... e PUTIN?...

Mesmo decantado dos constrangimentos socialistas, o culto de personalidade na Rússia parece ter sobrevivido ao famoso XX Congresso do PCUS que se propusera corrigi-lo. Parece ter sobrevivido à perestroika que se propusera reformá-lo. Parece ter sobrevivido à sociedade socialista sem classes. A memorabilia que lhe é dedicada na Rússia moderna é um fenómeno caricato mas também passível de nos deixar a constatar o ascendente de que o homem goza no país. Marx e os seus discípulos não perderam muito tempo a reflectir sobre estes aspectos da economia, mas se alguém fabrica estas coisas é na espectativa de que alguém as compre...
Tinteiros e facas corta-papel.
Cadernos escolares
Anéis
Bonecos representando-o como o super-homem ou o pai natal
Em estilo de agente secreto 007
Ou em estilo de Rambo
Como homem de acção e de reflexão
Mas também a embrulhar tabletes de chocolate
Como um ícone religioso, no domínio do quase divino
Mas também do fedorento, a enfeitar os pés
E até como guardião do café de casa 
E a representação mais controversa desta colecção: como tapete de sala...

A VOLTA À GÁLIA (28)

Perdido na tradução, no original o dono da taberna pronuncia romano (romain em francês) como romaing, o g final é uma característica do sotaque marselhês. E a passagem por Marselha não podia deixar de terminar com uma partida de pétanque, o tradicional jogo local.

26 maio 2017

SERÁ QUE AS SONDAGENS SÃO TODAS IGUALMENTE SÉRIAS OU HÁ PERÍODOS DE MAIOR SERIEDADE?

Se eu sei interpretar o gráfico acima e se o conjunto dos resultados das sondagens realizadas no Reino Unido são de fiar, então, desde o anúncio de surpresa da convocação de eleições no mês passado, registou-se um importante movimento popular de pessoas que desistiram da sua intenção de votar no UKIP para passarem a votar nos trabalhistas do Labour. De facto e se fizermos uma análise evolutiva, as intenções de voto neste último partido voltaram àquilo que haviam sido até à realização do referendo do Brexit (em meados de 2016) e subitamente - neste último mês - desapareceu de ampla parcela da comunicação social britânica o discurso sobre a inadequação e a contestação à liderança de Jeremyn Corbyn à frente do partido. Pelos vistos, desde o último mês e perante a perspectiva concreta de eleições os britânicos deixaram de se mostrar incomodados com o acentuado esquerdismo da liderança trabalhista que suscitaria a antipatia de muitos dos seus eleitores tradicionais, conforme era dado como adquirido pela opinião publicada. Ou é isso, ou então e como diriam vozes mais cepticas a respeito do rigor destas sondagens quando não há eleições à vista, é sempre bom que haja eleições de quando em vez, também para que a opinião publicada tenha que se ajustar a informar o que a opinião pública realmente pensa. Mas não restem dúvidas que o julgamento decisivo irá ser mesmo o das eleições de 8 de Junho próximo. Um julgamento duplo, acrescente-se, dos protagonistas políticos e dos protagonistas da informação (e das sondagens); da última vez, do referendo, foi um fiasco tanto para uns como para outros.

«A MAIOR BURLA DA HISTÓRIA PORTUGUESA»

Até agora, parecia-me que havia um certo consenso em classificar o caso do «Angola e Metrópole», protagonizado por Alves dos Reis na década de 1920, como a maior burla da história portuguesa. Um caso que até tinha reputação internacional. No entanto, 87 anos depois do julgamento do mais famoso burlão português (abaixo), o juiz que presidiu ao julgamento de Oliveira e Costa e dos seus restantes comparsas do BPN não teve qualquer hesitação em qualificar o caso que julgou como a maior burla da história portuguesa. E não se trata de uma peça de retórica: o meretíssimo juiz tem toda a razão. Se tomarmos as manigâncias de Alves dos Reis por referência, na época ele apropriou-se de 200.000 notas de 500$, num valor global de 100.000 contos, um valor que representaria um pouco menos de 1% do valor que se estima que fosse o do PIB da economia portuguesa na altura (1925). Pelas últimas avaliações feitas pelo Tribunal de Contas, os custos do BPN já montam a 5.400 milhões de €, o que representa 3,0% do valor do PIB da economia portuguesa à data da nacionalização do banco (2008). Alguma controvérsia se levanta - pertinente - quanto à decisão então tomada de nacionalizar o BPN e a forma de que ela se revestiu. Mas isso é uma discussão sobre a identidade dos que vão arcar com o prejuízo - tradicionalmente é o contribuinte... - e não com o montante desse prejuízo, que é o que está aqui em comparação: Oliveira e Costa vale três vezes por Alves dos Reis. Vamos a ver qual será o padrão de Ricardo Salgado medido em Alves dos Reis. Viveram-se tempos históricos no que respeita à dimensão da escroqueria em Portugal. Espera-se que se vivam agora também no seu combate.
Olhando para esta edição do Diário de Lisboa de 8 de Maio de 1930 percebe-se o quão diferentes eram aqueles tempos, em que Alves dos Reis esteve quatro anos e meio em prisão preventiva até que o ministério público se decidisse a avançar para o julgamento, o que terá decerto ajudado à epifania religiosa que o levou a confessar os seus crimes. Nos tempos modernos, recorde-se que João Vale e Azevedo também experimentou uma epifania, mas não lhe deu para confessar nada...

A VOLTA À GÁLIA (27)

A cena que se desenrola no interior desta taberna marselhesa é uma descarada alusão a uma escola de teatro e cinema da França meridional do período entre guerras de que aparecem alguns expoentes em cena. Assim, os jogadores de cartas (Fernand Charpin, Paul Dullac e Robert Vattier) são uma cópia de uma famosa cena de Marius, uma peça teatral depois transformada em filme, a primeira de uma trilogia do autor Marcel Pagnol (abaixo). O trocadilho com o nome de César (o estalajadeiro tem as feições de Jules Raimu, o actor principal) remete para o protagonista da terceira parte dessa trilogia, conhecida por a trilogia marselhesa. Desta escola assim homenageada, o nome mais conhecido internacionalmente será o de Fernandel.
Quanto à caldeirada local, designada por bouillabaisse, é uma versão mediterrânica da nossa.

25 maio 2017

A EVASÃO DE LUÍS NAPOLEÃO BONAPARTE

25 de Maio de 1846. Há precisamente 171 anos, Luís Napoleão Bonaparte, sobrinho do Imperador, e que virá a ser (o único) presidente da (II) República Francesa e também Imperador sob a designação de Napoleão III, evade-se da fortaleza prisão de Ham. Para ali ter chegado, fora condenado a prisão perpétua por ter fomentado uma espécie de golpe de Estado seis anos antes. A perpetuidade da prisão (uma perpetuidade bem confortável, adiante-se) terminou neste mesmo dia de há 171 anos, quando o prisioneiro abandonou a fortaleza de Ham (um castelo clássico, sombrio, cheio de pontes levadiças, fossos e torreões) pela porta principal em plena luz do dia: havia obras no castelo, os operários saíam e entravam sem grandes complicações, e Luís Napoleão Bonaparte vestiu uma indumentária de operário, cortou o seu célebre bigode, pôs um cachimbo na boca e umas tábuas ao ombro e foi-se embora. Um dia depois estava em Londres. Daí a um pouco mais de dois anos tornar-se-á o presidente de França, eleito com 74% dos votos aos 40 anos e 8 meses de idade, tornando-se no mais jovem presidente de França de sempre, até à eleição no princípio deste mês de Emmanuel Macron.

«DER ONKEL WOLFGANG»

Detesto descobrir que fui e o quanto fui enganado. Por anos a fio impingiram-nos a história (e a imagem) que tínhamos na família (europeia) um tio severíssimo que não gostava nada da maneira como nos havíamos comportado e que nos fazia um carão cada vez que havia uma reunião de família e que era muito ríspido quanto à forma como nos comportávamos. Constava que era menos severo com as senhoras. Em contrapartida corria o boato que tinha favoritos na família. Afinal, seis anos volvidos, descobre-se que der onkel Wolfgang (o tio Wolfgang: Wolfgang Schäuble, ministro das Finanças da Alemanha) é uma pessoa fofinha e até gosta de nós: aprecia futebol, a nossa selecção e os seus jogadores e até faz piadas a esse respeito...

Adenda: É deprimente aperceber-me o quanto líderes de opinião (caso deste ou deste) se esforçaram em textos pedagógicos por desmontar a seriedade do cumprimento de Schäuble. Se eles tiverem razão quanto à lucidez do leitor medio (e é provável que a tenham, porque eles é que lideram a opinião e não eu), então muito poucos terão sido aqueles que compreenderam a ironia deste meu texto supra.

«POLITICS CAN BE LIKE A BOX OF CHOCOLATES»

A citação original de Forrest Gump é esta acima: «É como a Mamã sempre disse: a Vida é como uma caixa de bombons. Nunca se sabe o que de lá se tira.» À época do filme, a filosofia subjacente à citação pareceu-me excessiva, demasiado deslocada da realidade, nunca os apreciei - ao filme e à filosofia - particularmente. Mas admito que possa ter estado errado e que possa ter havido muita dessa mesma atitude de ingenuidade cândida a explicar a eleição recente de Donald Trump. Pois bem, agora tem sido altura de ir provando o recheio dos bombons...

A VOLTA À GÁLIA (26)

O mistral é um vento característico da costa mediterrânica de França, capaz de provocar tempestades. Em contrapartida, a referência à erupção do Vesúvio é uma incongruência. Todos os leitores sabem que as aventuras de Astérix decorrem a partir do ano 50 a.C., enquanto a erupção do Vesúvio só veio a ter lugar em 79 d.C., mais de um século depois. E Astérix pode ser muito mais abusador do que Obélix: ele deixou o pobre dono do barco a 144 milhas náuticas do sítio onde pegara o barco - o equivalente a 267 km!

24 maio 2017

PELO 41º ANIVERSÁRIO DO «JULGAMENTO DE PARIS»

O julgamento de que aqui se vai falar teve muitos juízes, onze, conforme se pode ver nesta fotografia acima e de cuja reputação jurídica falaremos mais adiante. E os réus (se assim os podemos designar) foram vinte vinhos (dez brancos e dez tintos) que foram submetidos a uma prova cega para a sua classificação num concurso realizado em Paris naquele dia 24 de Maio de 1976, promovido por um importante comerciante de vinhos de qualidade de nacionalidade britânica. Os jurados haviam sido selecionados de entre a nata dos provadores de França, nomes que não dizem nada aos leigos, mas que incluíam, e só para exemplo, Odette Kahn, que era a chefe de redacção da revista La Revue du vin de France ou Christian Vanneque, o escanção do restaurante La Tour d'Argent, reputado por albergar a melhor cave de vinhos de todos os restaurantes parisienses. Configurada a excelência de quem ia julgar, resta acrescentar um detalhe: por uma primeira vez naqueles meios tão sofisticados, os reputadíssimos e incomparáveis vinhos franceses iriam poder ser comparados com concorrentes produzidos do outro lado do Atlântico, californianos, produzidos a partir das mesmas castas que haviam guindado os vinhos franceses à sua reputação impar. Enfim, para encurtar uma história que teve imensas peripécias mas cujo desfecho já se adivinha, não é que os vencedores em cada uma das duas categorias (brancos e tintos) foram vinhos californianos?...
Parece-me desnecessário explicar que o assunto se tornou numa grande barracada. Não era o reconhecimento do facto do vinho francês ser perfeitamente comparável com o que era produzido noutras regiões do Mundo. Era o facto desse reconhecimento ter sido avalizado pelo que de melhor a França apresentava em termos de provadores. Odette Kahn «celebrizou-se» na ocasião por, em vez de embatucar como o fizeram os seus colegas, ter ido ter com os organizadores a pedir-lhes de volta o seu boletim com as pontuações. Claro que aqueles, polidamente, declinaram o pedido. Mas houve um silêncio opressivo das revistas da especialidade a respeito do evento. Se ele veio a ser quebrado foi através da revista (bem generalista) Time e porque o assunto interessava sobremaneira em termos comerciais aos viticultores norte-americanos. O acontecimento só é hoje recordado porque, ao arrepio dos franceses que o querem esquecer, são os norte-americanos que não se cansam de o evocar. Tivesse o episódio acontecido com vinhos italianos, espanhóis, argentinos, australianos e ele já há muito estaria esquecido. Um ensinamento se retira de tudo isto, porém: testes cegos podem-se tornar na hecatombe das convenções sociais quando estas não têm fundamentação objectiva. É algo que me lembro sempre quando vejo assuntos deste e de género semelhante a serem abordados, seja a excelência dos vinhos, seja a maravilha da cozinha de um Mestre Cuca. Afinal, creio que pode haver um sentido complementar para aquele ditado daqueles anos que sugeria que a Vida é feita de pequenos nadas... Também pode ser feita de Grandes Nadas.

A VOLTA À GÁLIA (25)

A avenida ao longo do mar que é elogiada por Obélix é a Promenade des Anglais e a salada que compram para levar é a niçoise.

23 maio 2017

«EU PUNHA JÁ O MOEDAS A FUNCIONAR...»

A indulgência política como foi (e continua a ser!) tratado Carlos Moedas depois do que se ficou a saber no processo que conduziu ao colapso do banco Espírito Santo, não evitam que, a cada (re)aparição do comissário português, eu o imagine sempre a funcionar, embora desconheça em prol de que interesses. Percebeu-se, pelo que diziam na intimidade, que o consideravam um mero homem de mão. E quem é que o manobra nos dias que correm?

A VOLTA À GÁLIA (24)

Este penúltimo quadrado com a resposta à reclamação de Obélix de que havia pedido um prato e recebido outro tem ressonâncias algarvias que nos serão estranhamente familiares. Acrescente-se que, naquele caso, fica-se com uma certa pena que o estalajadeiro não tenha recebido o tratamento que Obélix costuma dispensar aos romanos.
Mas o tema que domina a prancha é a estrada nacional 7 (acima), tradicional percurso dos parisienses (e não só) para o Sul nos meses de férias e palco dos colossais engarrafamentos acima parodiados. Alguns anos antes da publicação de A Volta à Gália, no Verão de 1955, Charles Trenet cantara um sucesso musical a respeito da famosa estrada.

A construção de uma auto-estrada para substituir a famosa Nacional 7 foi até uma das prioridades da década de sessenta, uma iniciativa que, por causa do aumento do tráfego, acabou por não solucionar a tradicional imagem de marca da via nos meses de Verão como se vê por esta fotografia abaixo, que é bem recente.
Mas o tema continuou recorrente. Pensando no casal que acima se abraça, diga-se que quase uma década depois da publicação inicial de A Volta à Gália, em 1972, Michel Fugain, cantava uma história de amor (Une Belle Histoire), um fugaz encontro que ocorria precisamente na auto-estrada das férias (autoroute des vacances), quando «ele regressava a casa, lá em cima, em direcção ao nevoeiro» e «ela descia em direcção ao sul...».

«VERGANGENHEITSBEWÄLTIGUNG»

Conforme se pode ler na Wikipedia, Vergangenheitsbewältigung é uma daquelas infindáveis palavras compostas de que o idioma alemão guarda o segredo e que descreve neste caso o processo do como se deve lidar com o passado (Vergangenheit = passado; Bewältigung = reconciliar-se, sobrepujar), e que talvez melhor se traduza para o português pela expressão reconciliação com o passado. É uma palavra complexa para um assunto que, como se sabe pela História alemã recente, é delicado, mas que me ocorreu repetidamente ao longo do dia de ontem ao acompanhar como certas facções políticas e certa comunicação social em Portugal (tal como os respectivos protagonistas), acolhiam e comentavam as notícias de Bruxelas a respeito do défice português (abaixo, alguns recortes escolhidos do jornal Observador...). A grande diferença - e importante - é que se tratou no caso deles de uma espécie de (má) reconciliação com o presente, embora para essa circunstância suponho que os alemães ainda não criaram nenhuma palavra específica...