05 julho 2016

SOBERANIA PARLAMENTAR?

No rescaldo do referendo britânico surgiu uma opinião que se tem vindo a popularizar imenso por ser interessante. E é tanto mais interessante quanto me parece que serve para bloquear as consequências do resultado do referendo - do brexit. Explica-se (sucintamente) assim (cito): «No Reino Unido o princípio é soberania no Parlamento e não soberania no povo via referendum: é absolutamente legítimo ( e constitucional) que os deputados se oponham à revogação do acto que determinou a adesão do Reino Unido à União Europeia». Se há palavra que possua um valor reverencial a respeito do Reino Unido é Parlamento. O dito é uma instituição multisecular e tão única no Mundo que se torna por isso inatacável nas suas prerrogativas e na sabedoria centenária. E se há uma outra palavra que também possui um valor absoluto, mas aí mais entre nós, portugueses, e a respeito de legislação, é Constitucional. Quando a matéria é constitucional, ao contrário dos outros ramos do Direito, é quando se costuma produzir doutrina com a mesma fiabilidade de Nernst e a Terceira Lei da Termodinâmica: é dificilmente rebatível. Assim, se lemos por aí que o professor Fausto Quadros opina que o referendo não é vinculativo, (...) não vincula os órgãos da Coroa britânica. Portanto, não obriga também o Parlamento e que não está em causa a validade do referendo mas a sua eficácia, bem se poderia concluir que, se não fora para produzir quaisquer efeitos políticos, então toda a consulta pode não servir para nada, pode não ter passado de uma gigantesca brincadeira bem ao jeito do reputadíssimo humor britânico. Mas ao género dos Monty Phyton, sem punch-line, que até agora não se têm ouvido as gargalhadas... Em complemento a isso, têm-se ouvido opiniões que têm ido repegar argumentos sérios (e antigos) contra a realização de referendos e em prol dos mecanismos tradicionais da democracia representativa. A essas opiniões acessória e casualmente acrescenta-se que a maioria dos deputados britânicos são a favor do Bremain. É engraçado e apenas humano que essas opiniões de princípio só surjam quanto o desfecho do referendo vai contra aquilo que eu deduzo sejam as convicções do opinador. Por exemplo, a nenhum daqueles que agora vi evocar o tema nessa perspectiva, o vi fazer o mesmo por ocasião do referendo à independência da Escócia em Setembro de 2014... É aquela distância que vai das opiniões de princípio às opiniões de circunstância, em que as segundas não têm nada de mal, a não ser por as camuflarem daquilo que não são.
A referência à independência escocesa vem mesmo a propósito para regressar ao tema que era o objectivo inicial deste meu poste - a tal de soberania parlamentar exercida por um parlamento respeitavelmente multissecular, mas cuja soberania, tão brandida nos dias de hoje, há uns cem anos me parece que ainda não devia existir. Se existisse, a história da independência da Irlanda teria sido certamente diferente. Eu explico os factos: em Dezembro de 1918, no mês que se seguiu ao fim da Primeira Guerra Mundial realizaram-se eleições gerais no Reino Unido. Por causas que não interessa desenvolver, mas que já aqui desenvolvi num outro poste, a opinião pública irlandesa radicalizara-se acentuadamente durante a Guerra, os candidatos do Sinn Féin ganharam a esmagadora maioria dos círculos irlandeses (73 em 105 lugares, veja-se o mapa acima). Os eleitos do Sinn Féin recusaram-se a tomar lugar em Westminster e, em vez disso, em Janeiro de 1919 reuniram-se em Dublin, onde proclamaram a independência irlandesa. Exprimindo a vontade de 70% dos recém eleitos parlamentares irlandeses, não teria sido interessante acompanhar as negociações que se seguiriam a este exercício de soberania parlamentar? Teria, mas, como suspeitam, não foi nada disso que se passou. O governo britânico ilegalizou o Dáil Éireann (o recém proclamado parlamento irlandês). Durante os dois anos e meio que se seguiram travou-se uma guerra surda e selectiva que custou uns 2.000 mortos entre duas administrações que se procuravam sobrepor: a britânica e a irlandesa. Mas por fim os britânicos tiveram que reconhecer a derrota. Quando procuraram organizar novas eleições parlamentares em Maio de 1921, para substituir os deputados rebeldes, ninguém se atreveu a apresentar-se fora do Ulster contra os candidatos do Sinn Féin, que assim conquistaram os seus lugares sem necessidade sequer de votação. Foi uma demonstração de força que o governo de Londres percebeu muito melhor do que qualquer exercício de soberania parlamentar. Contra eles, nunca haveria qualquer possibilidade dos britânicos voltarem a estabelecer uma administração civil. Em cerca de um quarto do país vivia-se sob Lei Marcial. Dois meses depois das eleições, em Julho de 1921, assinaram-se as tréguas que viriam a culminar com a assinatura do Tratado Anglo-Irlandês em Dezembro desse mesmo ano, a que se seguiu o reconhecimento da independência (apenas) da parte Sul da Irlanda em 1922.
Percebe-se que actualmente não se fale muito dela, mas a história da independência da Irlanda é conhecida de todos os britânicos. Aliás, fosse para valer a tal de soberania parlamentar e alguns outros factos apresentar-se-iam de outra forma. Veja-se acima como ficou o mapa eleitoral da Escócia após as últimas eleições gerais britânicas em Maio de 2015: todos os 59 deputados escoceses eleitos salvo 3 pertencem ao partido nacionalista escocês (SNP). E no entanto, mesmo com essa soberania parlamentar esmagadora, quando no SNP se aborda de novo o tema da independência, fala-se de um novo referendo. Se calhar, e mesmo tratando-se da independência deles, os escoceses pró-independência têm é que fazer como nós, e prestar mais atenção às opiniões do professor Fausto Quadros... e dos outros especialistas em soberania parlamentar.

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