31 maio 2016

A LENDA WATERGATE

Há precisamente onze anos (2005) a revista Vanity Fair desvendava finalmente a identidade de Deep Throat depois de cerca de 33 anos de mistério sobre a identidade de quem encaminhara o processo conhecido por Caso Watergate que culminara com a resignação de Richard Nixon. Não me canso de me admirar com o que aconteceu, não até aí, entre os anos de 1972 e 2005, mas o que não aconteceu depois de se saber quem era e o que motivara o denunciante. Porque a revelação da identidade de Deep Throat veio sobretudo revelar uma tremenda fraude, aquilo que não passou de uma enorme fábula moralista contada pelo Washington Post, nessa fábula protagonizada por dois jovens jornalistas dos seus quadros que corajosamente desafiaram uma administração que perdera todas as referências morais de boa conduta até colocar de joelhos o homem mais poderoso do Mundo e mandar para a prisão os seus homens de mão. Em vez disso, a verdade por demais evidente e que fora escamoteada da opinião pública durante 33 anos, é que o FBI, ou pelo menos alguém muito bem colocado dentro dele, estivera desde o início a utilizar o Washington Post para colocar informação selecionada que se sabia muito bem poder vir a destruir o presidente, com os responsáveis do jornal a saberem isso e as suas implicações mas, apesar disso, a sonegarem a informação essencial para a verdade da história de qual era a identidade do informante - para que os leitores ao menos pudessem avaliar por si todo o processo - quem eram os maus e quem eram os bons, se algum sobrasse a merecer o último estatuto... Porque muito do que se escreveu de lírico sobre o jornalismo nos 33 anos que antecederam a revelação da identidade de Mark Felt passava obrigatoriamente pelo Caso Watergate, esta revelação deveria ter tido o efeito de uma cambalhota, a pedir um acto de contrição. Mas não, nada. Nos primeiros anos depois da revelação ainda atribui a ausência de compreensão do que havia acontecido a uma certa obtusidade corporativa a que não faltava uma dimensão trágico-nostálgica - a fazer lembrar, por exemplo,a síntese do XIV Congresso do PCP de 1992. Mas quando onze anos passados ainda ouço de quando em vez discursos elogiosos ao jornalismo pendurados em referências ao Caso Watergate, deixei-me de comiserações: é estupidez, mesmo, o que é espantoso é ser tão persistente. Talvez por que se prefira uma história bonita à verdade.

MARCELO e JOACHIM und ANGELA

Pela forma como foi pré-publicitada parece-me muito interessante a visita que Marcelo realizou a Berlim. E, logo por azar, na altura em que ele perdeu a graça mediática e em que os elogios a tudo o que fazia esmoreceram significativamente! É interessante porque a presidência portuguesa assume claramente que os assuntos europeus se tratam em Berlim. Manda quem pode, obedece quem deve, talvez o episódio possa servir de lição para que a comunicação social portuguesa deixe de andar a pedir opiniões a um qualquer contínuo do Berlaymont. Por outro lado, manda a verdade reconhecer, também o Joachim a quem o Marcelo acima aponta o dedo é uma figura nula na hierarquia política alemã - ele bem pode anunciar que não se quer intrometer nas decisões da União Europeia mas a verdade é que nem sequer tem capacidade para tal. Falou-se sobre refugiados (que não querem vir para cá, por isso nos podemos mostrar tão disponíveis para os acolher...) para não ter de se falar com o presidente alemão sobre a Primavera e as andorinhas. Tão pouco se deve acreditar que a reunião de pouco mais de meia-hora de Marcelo com a Angela produzirá frutos quanto aos objectivos que foram amplamente anunciados antes da viagem, ainda cá em Lisboa. Quem lida e/ou lidou com alemães sabe perfeitamente que eles costumam ser muito pouco sensíveis a pressões deste género; e a haver consequências deste género de gestos, existe uma probabilidade maior de que elas possam ser contraproducentes. Mas o problema das sanções a Portugal apresenta-se abafado pelo que irá ser decidido para Espanha. E o que for decidido para Espanha parece depender dos resultados das eleições que ali terão lugar em 26 de Junho. Se o PP e o Mariano ganharem, olhar-se-á para Espanha com muito mais bonomia do que se o resultado for diferente. De toda a forma, o desfecho delas escapará ao controlo de Marcelo, que só foi comentador da TVI, e não da Antena 3... Mas o que creio ter sido mais importante nesta iniciativa de Marcelo é que, para ele, mesmo que percamos a absolvição dos pecados no caso deste raid não produzir os resultados publicitados, ao menos a recusa alemã, tornada ostensiva, pode passar a constituir um capital de queixa para que mostremos que a nossa presença na União nos termos em que existe está a tornar-se insatisfatória. A acontecer, se acontecer, será uma mudança de atitude, boa para desenjoar de anos e anos de uma diplomacia feita de uma melíflua aquiescência e concordância que, prometendo-os, não parece ter obtidos grandes resultados... a não ser em perspectivas muito particulares.

PPD E BENFICA

Tanto quanto me lembro, o meu amigo Alberto foi a primeira pessoa que conheci que era do PPD e do Benfica. Era-o mas o facto de os associar na mesma frase não lhe granjeava grande reputação como ideólogo nem como desportista nesses tempos pioneiros da Democracia portuguesa em que o PPD era PPD. Mal sabíamos nós que o desdenhávamos então por simples, quanto o Alberto era um génio pioneiro incompreendido como o fora o seu homónimo Einstein. Eram tempos em que - à excepção do Alberto, daí o destaque - futebol e política eram considerados socialmente tão estanques que o próprio presidente (Eanes), quando instado pelos jornalistas a dizer qual o seu clube, mandava responder sem se rir (era a especialidade dele) que nunca fizera uma opção clubística...

Os tempos evoluíram. Vinte anos depois as pulsões clubísticas dos políticos já tinham passado a ser toleráveis e o palácio de Belém era ocupado por um sportinguista apaixonado (Sampaio). Porém, em contraste, Pedro Santana Lopes bem depressa percebeu, quando se tornou presidente do Sporting em 1995, que corria o risco de entrar por um beco sem saída para as suas ambições políticas e renunciou ao cargo. Os dois mundos não se misturavam embora tendessem a assemelhar-se nos métodos. Mas os estados de alma eram considerados distintos. Não era por acaso que por esses anos Guterres ganhava eleições afixando cartazes dizendo razão e coração.
Contudo, nos métodos, e porque nos estamos a tornar numa Democracia cada vez mais consolidada, as eleições internas nos clubes têm tendido a assemelhar-se cada vez mais a eleições internas nos partidos políticos que as promovem - só para citar os exemplos mais recentes comparem-se os resultados norte-coreanos que reelegeram tanto Jorge Nuno Pinto da Costa no Futebol Clube do Porto como António Costa no Partido Socialista. Mas o mais importante, e que tem dado cada vez mais razão ao Alberto, é o fenómeno estranho a que eu tenho assistido de há vinte anos para cá, em sentido inverso àquilo que seriam as minhas expectativas, é que em vez de ser o futebol a sofisticar-se, com os adeptos a tornarem-se mais exigentes para com o cumprimento das promessas desbragadas e demagógicas dos candidatos a presidentes dos clubes, confrontando estes com as promessas por cumprir como o fazem com os políticos, o que se tem vindo a assistir é ao inverso, constata-se aquilo a que poderei chamar de futebolização da política.

Em pessoas que me habituara a considerar as suas opiniões políticas, embora discordando delas, surpreendo-me agora a desdenhá-las porque as opiniões parecem todas assentes no axioma que o-meu-clube-não-comete-faltas-na-grande-área e que portanto todos os penaltis assinalados contra são fraudulentos. Se calhar esta evolução dever-se-á a que estas pessoas estarão a ser mais genuínas. Ainda bem (para elas). E ainda bem para o Alberto que tinha razão já há quarenta anos...

Ele que me perdoe o desdém com que o julgávamos há quarenta anos porque há uma fracção muito significativa da sociedade, incomensuravelmente superior ao que sempre pensei existir, que tem uma concepção idêntica de como se pensam e se argumentam opções clubísticas e políticas. Andaram foi estes anos todos envergonhados em o assumir...

30 maio 2016

MORTES MAFIOSAS

Quando é a sério, mais do que um momento espectacular seguido de uma pose sangrenta e indecorosa, o assassinado não ressuscita ao sinal da claquete. No canto inferior direito, na fotografia a preto e branco, a Angelo Bruno (1910-1980), que fora o líder da mafia de Philadelphia e que ali adquirira a alcunha de The Gentle Don por só recorrer à violência em última instância, de nada lhe valeu a reputação de gentileza observando a forma como terminou a carreira, executado com um tiro de caçadeira na nuca por ordens que se acredita terem vindo do seu próprio consigliere.

O AMARELO COMO COR DO ULTRAMONTANISMO?

Por coincidência - ou talvez não... - há precisamente 182 anos Joaquim António de Aguiar (1792-1884, acima vê-se a rua de Lisboa a que foi dado o seu nome) enquanto ministro dos Negócios Eclesiásticos e da Justiça, promulgava a Lei que extinguia todos os conventos, mosteiros, colégios, hospícios e quaisquer outras casas das ordens religiosas em Portugal com a nacionalização das suas propriedades. Pela iniciativa e pelo carácter anti-clerical da Lei o seu promotor recebeu a alcunha (que nunca mais perdeu atá à sua morte, cinquenta anos passados) de Mata-Frades. Mas muito menos folclórico e muito menos conhecido que a famosa alcunha é o facto de Aguiar estar a desempenhar aquele cargo apenas há cerca de um mês quando a Lei foi promulgada. Normalmente também não se compara a sua iniciativa com a de outros irmãos seus da maçonaria para a contextualizar: 54 anos antes (em 1780) o Imperador José II da Áustria extinguira 600 conventos e mosteiros austríacos e húngaros, pertencentes a ordens contemplativas que ele considerava inúteis, e 44 anos antes (em 1789) fora Talleyrand (por sinal bispo de Autun, à data dos acontecimentos) que apresentara um projecto de decreto (que fora aprovado) à Assembleia constituinte francesa para que os bens eclesiásticos em França fossem colocados à disposição da Nação (um eufemismo para que eles fossem nacionalizados). Houve quem antes quisesse acabar com uma parcela substancial da vida monástica na Europa e houve também quem o quisesse fazer cinicamente para equilibrar as contas públicas, mas isso não parece interessar-nos. Alcunhas, assim como outros aspectos superficiais do conflito entre o anti-clericalismo e o ultramontanismo (como, por exemplo, a questão da cor dos protestos), isso é que parece ser tipicamente português.

29 maio 2016

«CARIDADES»

Notícia engraçada esta, a que saiu no The Sunday Times de hoje, e que diz respeito à estrutura de custos de algumas das mais visíveis - em Inglaterra - organizações de benemerência. De acordo com um estudo efectuado pela Charity Commission, a entidade encarregue de supervisionar organizações com designações tão arrebatadoras como Mother Teresa Children's Foundation ou Child Survival Fund, descobriu-se que, em média, as 10 organizações inspeccionadas (veja-se o mapa abaixo) alocam 78% das suas receitas de fundos em actividades destinadas em promover ainda mais receitas (actividade que é normalmente subcontratada a empresas especializadas). Só dos restantes 22% se destinará uma parte às crianças, à fome, à luta contra o cancro ou qualquer outra causa notável que conste como objecto principal da organização. Por cá, adivinha-se muito longe o dia em que alguém se atreva a escrutinar de forma objectiva o modo como essas organizações beneméritas funcionam. Se calhar há umas que até estão a funcionar muito bem, mas serão todas assim?...

27 maio 2016

O 27 de MAIO de 1977


Já há muita coisa escrita sobre o 27 de Maio de 1977 em Luanda. Talvez até demais e acompanhada daquele irritante complemento que ficou ainda qualquer coisa por contar. Afinal tratou-se apenas de uma tentativa falhada de golpe de Estado. Os dois lados estão substancialmente identificados - e é por isso que, por exemplo, hoje temos a ministra da Justiça que temos e não outra. Os apoios às facções também estão genericamente identificados, embora a intensidade desses apoios possam ter sido algo dissimulados posteriormente. Mesmo assim, ainda consigo descobrir alguns pormenores que merecem o destaque de um poste. O primeiro é um vídeo da televisão francesa com imagens do dia do golpe. São suficientemente confusas para me parecerem genuínas. E outro pormenor é este anúncio no Diário de Lisboa a um livro de Nito Alves que eu presumo editado - ou pelo menos distribuído - cá em Portugal. O anúncio data de Setembro de 1976 - oito meses antes do golpe - e promete-nos a poesia de um poeta, uma coincidência pelo menos interessante quando se sabe que Agostinho Neto também era incensado como um. Os vencedores do 27 de Maio de 1977 teriam as suas razões para se queixar de intromissão portuguesa na tentativa falhada, embora paradoxalmente essa intromissão nada devesse ao Estado português, mas sim a uma esquerda revolucionária doméstica que, de tão voluntariosos, seriam os expoentes involuntários do neocolonialismo...

26 maio 2016

FLEUMA BRITÂNICA

As elites britânicas e o Reino Unido institucional têm uma capacidade de dissimulação e encaixe como não deve haver muitos outros no resto do Mundo. Ainda há pouco a divagação de pensamentos me levou até à baronesa Jay (1939- ). Nascida Margaret Callaghan, casou em 1961 com Peter Jay (1937- ), um jornalista (editor económico do The Times) que causou um certo furor no Foreign Office quando em 1977 foi nomeado, aos 40 anos, embaixador britânico em Washington. Houve quem acusasse David Owen, o ministro, de nepotismo, mas não deve ter causado dano à nomeação que Margaret fosse filha do primeiro-ministro James Callaghan. Se a nomeação foi um pouco controversa de um dos lados do Atlântico, a estadia foi-o ainda mais do outro lado: Margaret, a embaixatriz, envolveu-se num affair com Carl Bernstein, o jornalista do Washington Post, tornado famoso por causa do Caso Watergate. Como é que o caso podia piorar? Com o facto de Bernstein ser casado com Nora Ephron, argumentista de cinema de sucesso. Para quem lhe tivesse escapado toda a história - sórdida, o marido encornado desforrou-se e teve uma filha da babá das crianças - nos jornais pôde apreciá-la no cinema. Em circunstâncias normais de pressão e temperatura este episódio de um casal que foi dar bandeira para a capital de um país próximo seria o fim de duas carreiras. Não foi o caso: em 1992 Margaret foi mais do que reabilitada, foi nobilitada, tornou-se baronesa. Isto no mesmo país onde algumas outras aventuras extra-conjugais têm aspecto de serem assuntos de Estado.

25 maio 2016

LONDRES EM 1970 PELOS OLHOS DE UM SOVIÉTICO

Em 1970 um cidadão soviético esteve de visita a Londres e estas são algumas das fotografias da sua visita. Se alguns dos temas...
...escolhidos por ele se mostravam canónicos do turista comum, caso do guarda montado da Rainha, outros denunciavam, ainda que involuntariamente, o Muro que dividia a Europa,...
...como seriam os casos da profusão da publicidade, da liberalidade de moda e costumes e de uma tolerância não repressiva para o comércio não convencional.

24 maio 2016

OS MERCÁDOS! OS MERCÁDOS!

Já aqui tive oportunidade de me referir a algumas peripécias que ocorreram a 21 de Maio de 1981 por ocasião da tomada de posse de François Mitterrand que vencera as eleições de dia 10. No entanto deixei para relatar depois a queda abrupta das cotações da Bolsa de Paris a que a comunicação social afecta à facção derrotada se fartou de dar destaque – é a mais precoce reacção de os mercádos a que me lembro que foi dado valente destaque mediático – e a que a facção vencedora ripostou (acima) com uma ironia que me fez lembrar o tratamento dado mais recentemente à geringonça. A verdade é que a reacção dos ditos mercados foi mesmo significativa – há quem a considere ter-se tratado do maior crash bolsista registado na Bolsa de Paris (abaixo).
Apesar das acções terem perdido em média um terço do seu valor nesse mês, sobriamente, já na própria época dava que pensar que não parecia haver razões fundamentais para que ocorresse tal pânico: a França já tivera outro presidente socialista (Vincent Auriol) e o partido também fizera parte de incontáveis governos das III e IV Repúblicas. Apesar dos cabeçalhos da época, a História veio a remeter o episódio para a sua verdadeira dimensão: qualquer súmula que se faça da actuação de Mitterrand na presidência de França (1981-95), por muito crítica que seja (e eu acho que as merece, às críticas, e contundentes), nem sequer refere que tudo terá começado pelo maior crash bolsista de França. Tanto pior para a importância da reacção de os mercádos...

...E QUAIS SÃO AS NACIONALIDADES DOS CREDORES?

A caricatura acima tem o traço, a verve e a inspiração reconhecíveis da revista The Economist. Apesar de nos mostrar um Matteo Renzi que se afunda com o seu país agrilhoado ao peso da dívida, o teor da notícia que o desenho ilustra é até particularmente elogioso para com o papel que a Itália possa vir a desempenhar para ultrapassar o marasmo em que, mais do que apenas a Itália, toda a Europa parece ter submergido. Mas é a própria imagem que desencadeia uma das dúvidas mais constantemente contornadas quando se fala da actual situação financeira mundial: qual é a identidade, qual é a nacionalidade dos credores que detém as dívidas soberanas, como a italiana mas também a grega, a espanhola, ou a nossa? Mesmo os leigos perceberão que aquela bola de ferro que arrasta Renzi não será um peso morto só por si, dividida em gomos (pesados) ela pertencerá a alguém. A quem? Se pegarmos no caso da dívida grega, que é a que mais estará a ser escrutinada pelas razões óbvias, até nesse caso, as explicações são manifestamente insuficientes. Num apanhado realizado em Fevereiro de 2015, há consenso quanto ao montante em dívida - 323 mil milhões de euros - mas há parcelas que o compõem que são tudo menos esclarecedoras: a) Outros Títulos - 48,8 mil milhões (que títulos e quem os detém?); b) Outros Países da Eurozona - 34,0 mil milhões (que países e que montantes?); c) Outros Empréstimos - 10,5 mil milhões (quem emprestou?); d) Bancos Estrangeiros - 2,4 mil milhões (que bancos e de que nacionalidades?). A Grécia será o país cuja dívida soberana será a que estará a ser publicamente mais escrutinada e, mesmo assim e à primeira vista, não se parece perceber lá muito bem quem detém 30% dela. A Itália não está melhor e Portugal tão pouco. Experimente-se repetir o mesmo exercício de tentar encontrar na internet informação sobre as nacionalidades de quem detenha dívida soberana de outros países dos PIGS (incluindo Portugal) que eu desejo-lhe boa sorte... Quando de um óbito habilitam-se os herdeiros, quando de uma falência fazem-no os credores, mas aqui o que parece vantajoso é deixar correr as coisas (sem que os devedores provoquem ondas de choque por suspenderem os pagamentos) e passar-se desapercebido.
Esta capa de opacidade que cai sobre dados económicos que, por princípio, deviam estar facilmente disponíveis e deviam ser transparentes, lembra-me um episódio que me aconteceu já lá vão muitos anos. Foi um exercício a que me dediquei a partir dos dados daqueles anuários sobre todas as economias mundiais (acima). A partir da constatação que a esmagadora maioria dessas economias registavam deficits nas sua balanças comerciais dei-me à pachorra de as transpor a todas para uma folha de cálculo para verificar se estatisticamente seria verdade aquilo que seria óbvio: que o Mundo teria um comércio externo saldado. Mas não, e a diferença era substantiva, e o mesmo se passava com os saldos agregados das Balanças de Pagamentos¹. Foi um momento revelador do que pode ser a fiabilidade destes dados macroeconómicos. Isso, ou então há comércio externo com a Lua... Mas, regressando à questão inicial, a das dívidas soberanas, aqui põe-se um problema para além da sua adulteração: a sua omissão. E isso torna-se importante para avaliarmos quais os interesses em causa quando das posições antagónicas para a resolução da dívida grega. Há uma reunião para isso hoje: parece haver uma divergência de fundo entre os europeus e o FMI. A posição do FMI parece mais branda, mas a reputação histórica do FMI (de que não facilita nada a ninguém) faz com que eu não acredite em histórias daquelas com índios (maus - alemães) e cow-boys (bons - FMI), conforme nos conta Wolfgang Münchau. Para assertividades dessas creio que nem precisamos de importações da Europa, já cá temos jornalistas económicos como o Camilo Lourenço... O que eu aqui me lamento é que gostaria de ter dados para formar alguma opinião sem depender do que escreve o Münchau. Saber quem deve o quê a quem ajudava. E como não sei e como não sou jornalista e não sou obrigado a mandar palpites mesmo que esteja às escuras, queixo-me e calo-me.

¹ Repetido o exercício com uma listagem de Balanças de Pagamentos mais actualizada (de 2015), ficou por explicar um saldo excedentário que equivale sensivelmente a metade do deficit dos Estados Unidos - acessoriamente o país do mundo com a Balança de Pagamentos mais deficitária segundo os dados da própria CIA.

23 maio 2016

UM VERDADEIRO KIM PHILBY PORTUGUÊS

Tantas foram as trocas de acusações de traições passadas, veemente e que se perpetuam até hoje, que podem ir de um Manuel Alegre, vendido em Argel, a um Pedro Passos Coelho, vendido a Bruxelas, e é ironicamente agora, quanto até passámos a ter comunistas, ainda proletariamente internacionalistas, mas assumidamente patrióticos, que se desencadeia o maior escândalo da espionagem portuguesa, com a traição de um alto funcionário dos nossos serviços de informações, ainda por cima para os russos... É embaraçoso, mas não sei se esta demonstração de interesse dos russos pelos nossos segredos não pode deixar de ser vista de uma forma lisonjeira... É que ficou a reputação que, no tempo do PREC, os russos levaram de cá o que quiseram, mas, tal era a ingenuidade militante, nem se esforçaram para o sacar: fomos nós que o oferecemos...
(Para quem não saiba quem foi Kim Philby, consulte a Wikipedia)

O PRÉMIO OBSERVADOR

O Prémio Observador deste dia vai justissimamente para o jornalista BV, da redacção da TVI24, que conseguiu a proeza de nos anunciar um planeta Marte que poderá ser visto a olho nu nos próximos dias precavendo-nos: se as condições meteorológicas o permitirem. Tal qual o analiso, o problema que aqui se coloca não será a notícia não ser verdadeira - vai-se poder ver Marte a olho nu, sim senhor! - mas o que me intriga foi ter-me escapado a data a partir da qual teria acontecido a fase anterior - quando é que se deixou de poder ver Marte a partir da Terra (se as condições meteorológicas o permitissem)?
Nestes momentos ocorre-me imaginar a hipotética argumentação dessa revelação recente do rigor jornalístico que foi o director da TVI Sérgio Figueiredo que, neste caso, poderia sair também em defesa de BV dizendo qualquer coisa como: - Sempre se viu a olho nu, é verdade, suponho que os jornalistas da TVI vieram cá fora olhar para o céu e verificar, mas de qualquer maneira, via-se desfocado e com muito poucos pormenores...

O IMPACTO DO PREC NA PROGRAMAÇÃO DAS ESTREIAS CINEMATOGRÁFICAS EM PORTUGAL

Há uma diferença de cerca de dois anos e meio entre as estreia mundiais de O Padrinho (1972) e de O Padrinho Parte II (1974). Em Portugal essa diferença é muito superior: cinco anos quase contados dia a dia. O primeiro Padrinho estreou-se ainda antes do 25 de Abril, em 24 de Outubro de 1972, enquanto que a sequela só veio a ser estreada em 14 de Outubro de 1977, já o fim do PREC contava quase dois anos, e isso apesar deste último filme ter recebido 6 Óscares. A única explicação para tal atraso será porque os cinéfilos portugueses passaram o período que mediou a ilustrarem-se com a apreciação de filmes da cinematografia mundial que desconheciam por terem estado proibidas pelo fascismo, caso de obras-primas como O Couraçado Pontemkine (1925), ou então obras-não-tão-primas como O Destacamento Vermelho Feminino (1971) ou ainda, em jeito menos ideológico e mais intimista, A Mamã e a Puta (1973), mais de três horas e meia com conversa a mais e quecas a menos.

22 maio 2016

PARA AJUDAR À COMPREENSÃO DA SITUAÇÃO BRASILEIRA

Os dados do crescimento económico do Brasil são muito maus (-5,9%). Entre as grandes economias da América Latina pior só mesmo a Venezuela. Quem quiser formar opinião sobre o que se passa no Brasil e preferir esquecer esse detalhe, que o faça à vontade. Mas será preferível levar em linha de conta que o país vive uma enorme recessão e ver o que aconteceu no Brasil quando de recessões semelhantes (os dados do quadro abaixo são os oficiais). O crescimento da economia brasileira tem sido normalmente constante e continuado, só perturbado de quando em vez por algumas recessões que se prolongam no tempo (e que estão assinaladas a vermelho). Houve o impacto da recessão de 1929 (-5,3%) e houve a Revolução de 1930 e o fim da política do café com leite. Houve nova recessão no princípio da década de oitenta (-6,3%), o movimento das Diretas Já! e aí até os militares tiveram que abrir mão do poder político que haviam conquistado em 1964. Houve uma terceira recessão importante no princípio da década de noventa (-3,8%) e a coisa culminou com o impeachment de Fernando Collor de Mello. Estes -5,9% mostram que não se deve tratar a destituição de Dilma Rousseff em 2016 como se se tratasse exclusivamente de uma crise política, esquecendo as circunstâncias económicas e sociais em que ocorre. As duas câmaras não podem ter votado esmagadoramente (por mais de 70% dos votos dos representantes presentes) pelo seu afastamento apenas por uma questão de oportunismo. O oportunismo é uma constante da política brasileira e está à disposição das duas partes em contenda - Dilma e o PT têm anos fazendo uso dele. Se os deputados e senadores assim se comportaram foi porque a reputação popular de Dilma está muito em baixo. E, quanto à sua (falta de) qualidade, reflita-se aonde a crítica nos pode levar, ao eleitorado que os elegeu, que, por acaso, são precisamente os mesmos milhões que possuíram a clarividência para eleger e reeleger Dilma.

FLORENCE FOSTER JENKINS

Se, a partir da fotografia, o leitor não se impressionou com a soprano Florence Foster Jenkins (1868-1944), então espere até a ouvir...

Para quem não conheça a ária original pode ouvi-la interpretada por uma banal Maria Callas para avalizar melhor o cunho pessoal que Florence Foster Jenkins punha nas suas interpretações: (1), (2), (3)... Dois episódios se associaram para reevocar aquela que ficou conhecida pela diva do grito aqui no Herdeiro de Aécio. Por um lado a notícia da estreia (a 6 de Maio) de um filme biográfico seu, protagonizado por Meryl Streep e Hugh Grant. Por outro lado, houve uma estranha semelhança de sensações quando assisti à recente prestação parlamentar de Sérgio Figueiredo. Assim como as inacreditáveis interpretações de Florence Foster Jenkins necessitaram de uma estranha conivência social para prosseguirem durante anos a fio, também não creio que a carreira na comunicação social de alguém que acabou de fazer a figura que Sérgio Figueiredo fez no parlamento se pode ter sustentado apenas nas virtudes e mérito do próprio.

21 maio 2016

«ONE SMALL STEP FOR A MAN...»

Neil Armstrong tirou várias fotografias ao seu colega Edwin Buzz Aldrin quando da estadia deles na Lua e algumas fotografias saíram melhores que outras. A esta, por exemplo, falta-lhe a dignidade do momento histórico e permanece (justamente) desconhecida. De costas e de mãos ocupadas, pelas marcas virgens das suas passadas no chão e pela sombra projectada no solo, o astronauta parece um daqueles nossos veraneantes que gosta de ir cedinho para a praia, com as cadeiras de praia de um lado e a mala térmica do outro. Só fica a faltar o chapéu de sol (trazido pelo filho mais velho) e o jornal A Bola (que o quiosque ainda não abrira). Na realidade, tratava-se de equipamentos tão sofisticados quanto um medidor sísmico (PSEP), no lado esquerdo, e um rectro-reflector Laser (LR3), no lado direito, mas uma fotografia histórica dos primeiros momentos na Lua não se podia assemelhar a um banal quadro de estação balnear de uma típica praia portuguesa.

E DEPOIS DO ADEUS...

(...)
Aqui há uns dias houve quem escrevesse de Atenas e constatasse que, seis anos depois da chegada da Troika à Grécia, o metropolitano local continuava em funcionamento com o pagamento do respectivo bilhete como opção do utente. Hoje é a capa do Jornal de Notícias que nos informa que, cinco anos depois da chegada da Troika a Portugal, mais de ⅔ das pessoas no Porto preferem não pagar o estacionamento. A primeira conclusão que me ocorre, mais instintiva, é que a próxima vez que quiserem mandar José Rodrigues dos Santos numa reportagem em que ele se indigne muito com os borlistas locais, a RTP pode poupar no bilhete de avião. A segunda conclusão, mais reflectida, é que perante este panorama no terreno, parece inferir-se que uma parte apreciável das famosas reformas estruturais preconizadas pela Troika tendem a tornar-se numa paródia - ou não se fazem ou as coisas tendem a retornar ao estado nativo. António Costa é um optimista descabelado mas tudo o que se discute em Bruxelas também será só para levar moderadamente a sério. É um impasse a pedir: a) ou uma solução à Brecht com a dissolução do povo e a eleição de novos povos; b) ou uma solução prevendo guarnições de ocupação formadas por técnicos (nós já cá tivemos o Vítor Gaspar, mas agora seriam contingentes mais numerosos e a uma escala mais microeconómica).
(...)

PORQUE É QUE UMA BOA NOTÍCIA NÃO É UMA NOTÍCIA BOA

Há uns três meses a revista Fortune publicou um estudo sobre a popularidade das companhias aéreas de todo o Mundo baseado no conteúdo do que se tweetava a seu respeito. O artigo da Fortune destacava sobretudo a (má) prestação das companhias norte-americanas, que eram cinco das dez transportadoras mais impopulares. Um efeito colateral do estudo é que havia, no outro extremo do espectro, as dez transportadoras das quais se tweetava mais elogiosamente. E aí aparecia em quarto lugar a TAP. Convém agora destacar previamente a excepção constituída pela TSF que, na indústria da tradução do que se publica no estrangeiro a nosso respeito, cumpriu, noticiando a boa classificação da companhia aérea portuguesa. Mas parece ter sido a única. Não houve aquela tradicional manada de notícias oriundas de cada um dos órgãos de comunicação social portugueses dizendo todas o mesmo. Porventura porque o conteúdo era elogioso mas também talvez porque as Relações Públicas da TAP andariam a dormir na forma. O que a experiência nos assegura é que, figurasse a TAP na lista das companhias mais criticadas, e era garantido que a ressonância da notícia teria sido completamente diferente. Esta coisa de nos flagelarmos pode ser o nosso Fado, mas o nosso jornalismo, e para continuar a metáfora, é uma grande guitarra...

20 maio 2016

GRANDES MOMENTOS DE TELEVISÃO

Através do You Tube tive o privilégio de assistir à parte da audição parlamentar de Sérgio Figueiredo, director de informação da TVI, em que este é questionado por Carlos Abreu Amorim, deputado do PSD. Escrevi privilégio porque considero tratar-se de um excelente momento televisivo pela vivacidade da troca de impressões entre ambos. Suponho que os profissionais da TVI também o reconheceriam, considerado o perfil vivaz das contratações recentes que os vimos fazer para comentadores de programas de futebol. Nesse capítulo, reconheça-se que a TVI apresenta um plantel único (acima) e programas raros. O diálogo travado entre Carlos Abreu Amorim e Sérgio Figueiredo (abaixo, a primeira e a segunda intervenções) foi também vivaz e raro e estou convicto que a sua transmissão em horário nobre garantiria um esplendido share de audiência naquele mesmo segmento dos que se deliciam com as altercações entre Manuel Serrão e Pedro Guerra e o outro novo do Sporting de que ainda não fixei o nome. Mas, se os profissionais da TVI reconheceram a excelência do momento televisivo que o seu director protagonizou, constate-se que não se deu por nada: o próprio canal sintetizou mais de uma hora de troca de acusações num vídeo com a duração de 1:07. Ora um minuto deve ser mais ou menos o quádruplo do tempo útil com uma ideia que se pode extrair de uma edição típica do celebrado programa Prolongamento TVI24 (e o vídeo desta semana tem a duração de 1:45:42...). Carlos Abreu Amorim pode-se exprimir com a mesma entoação de Manuel Serrão e exibir a mesma compleição de Pedro Guerra, mas costuma dizer coisas muito mais importantes e interessantes do que qualquer um deles. Tanto assim, que é minha impressão que, mesmo sem ter ouvido todas as interpelações dos deputados presentes, quanto ao assunto que os levou àquela comissão, Sérgio Figueiredo e a TVI saíram da audição bastante enxovalhados. Não tivesse sido assim e a cobertura noticiosa do acontecimento teria sido outra.

O que nos leva a um outro lado da questão. Quando de um muro por parte da comunicação social tradicional, como neste caso parece propício vir a acontecer, os vídeos postados no You Tube são uma alternativa. Não foi bem o caso, mas a famosa montagem em que Zeinal Bava comparecia numa outra comissão parlamentar e onde repetidamente invocava a memória para justificar-se da falta dela foi uma criação - creio - do You Tube, e teve um efeito arrasador sobre a respeitabilidade do próprio. É o mais famoso caso de um assassinato naquelas circunstâncias. Também ao You Tube se podem ir buscar outras intervenções em que o bombo da festa é o mesmo Zeinal Bava, como a que então catapultou Mariana Mortágua para a fama, e há outras anteriores, e infelizmente menos famosas, em que o mesmo Bava se mostra com um outro espírito, altaneiro, em que, mais do que a recusa em responder a questões de Bruno Dias do PCP, se regista o estilo em que a recusa é expressa, acobertada pelo comportamento de Miguel Macedo do PSD, que presidia à comissão (o que nos dá vontade de dizer nos dois casos: Cá se fazem, cá se pagam!). O que é importante reter é que tanto bloquistas como comunistas, por vezes os outros partidos também, são useiros e vezeiros em irem para estas comissões brilhar para depois tirarem proveito desses brilharetes exibindo-os no You Tube. O que estranho é que, neste caso de Sérgio Figueiredo e da TVI isso não tenha acontecido. O PS cumpriu, publicando entretanto as intervenções dos seus deputados Eurico Brilhante Dias e - de um estranhamente cordato - João Galamba, os outros três partidos destacaram-se pela ausência (no You Tube) e a estrela do dia daquela comissão terá sido mesmo a excelente peixeirada entre Carlos Abreu Amorim e Sérgio Figueiredo, em que o último aparece na posição impossível de defender os seus jornalistas de terem feito uma cagada das antigas. Mas parece deduzir-se daqui, e relembre-se a animação que foi, todos ao mesmo tempo, a arriar em Zeinal Bava, que há uma cenografia por detrás do que acontece, estabelecida em função das prioridades dos partidos políticos. Cada partido é mais amigo da Verdade e de chamar a atenção para Ela conforme as circunstâncias.

TV NOSTALGIA - 86 («RITRATTO DI DONNA VELATA»)


Demorou o seu tempo até conseguir identificar esta série italiana com um argumento que misturava o mistério histórico e o policial. A imagem que publico era o genérico da apresentação e preserva o saudoso preto e branco do original, detalhe que hoje ainda ajuda ao charme desta série que ia buscar uma boa parte do seu intrincado argumento aos etruscos, povo misterioso que precedeu os romanos. A estátua que se vê acima é, aliás, um bronze baptizado de Ombra della sera, um dos exemplares mais conhecidos da estatuária etrusca. Ritratto di Donna Velata foi transmitida durante as segundas-feiras de Maio de 1977, em cinco episódios de uma hora cada, mas na RTP-2, pormenor que lhe conferia um acréscimo de intelectualidade respeitável. Descobri agora que a série fora um sucesso no país de origem, a ponto de vê-la evocada 35 anos depois em programas de entretenimento. Pior terá sido revê-la: passe-se a datação das interpretações e da própria linguagem televisiva, o enredo era tão complicado que, o quinto e último episódio começa pelo resumo daquilo que acontecera nos quatro anteriores com uma explicação que precisa de uns bons quatro minutos e meio...

19 maio 2016

A BRAGUILHA

A fotografia será centenária, desconheço quem terá sido o autor, nem isso parecerá importante, mas, sem ser uma daquelas fotografias imaginativas ou esteticamente cuidadas, é das outras, chãs mas com personalidade e que só poderiam receber um título...

INTELIGÊNCIAS

É engraçadíssimo como tantas pessoas partilham e propagam esta (suposta) carta no facebook sem sequer se interrogarem porque é que dois alemães num país onde os idiomas oficiais são o alemão, o francês e o italiano haviam de trocar esta missiva em... inglês. Tem de ser por um motivo profundo, apropriadamente, como na física teórica, do domínio do infinitamente denso...

AS MANGAS DE MAO TSE-TUNG

A propósito da recente evocação pela comunicação social do cinquentenário do início da Revolução Cultural pensei que valesse a pena lembrar - ou relembrar para os que já conheçam o episódio - a importância simbólica que as mangas - o fruto - representaram nesses momentos em que o Socialismo foi catapultado para tais extremos de vanguarda - necessariamente esclarecida - que hoje os observamos como se se tratasse de um manicómio colectivo. As origens da história das mangas revolucionárias são um pouco confusas mas parece indiscutível que as mangas originais resultavam de um presente que o ministro dos Negócios Estrangeiros paquistanês, Mian Arshad Hussain, trouxera na bagagem para oferecer a Mao Tse-tung quando de uma visita que realizou à China em princípios de Agosto de 1968. Esclareça-se que, naquele tempo o nome do Grande Timoneiro escrevia-se mesmo assim: Mao Tse-tung (adoptando o sistema Wade-Giles).
Depois a história das lendas prossegue imergindo de quando em vez na lenda e nas interpretações. Não se sabe quantas mangas eram, os números podem ser sete (demasiado cabalístico) e podem chegar às quarenta. Não se pode ter a certeza, como é sugestão de algumas fontes, se tudo começou somente por Mao não apreciar o fruto. É razoável imaginar que, sendo um presente, as mangas fossem de uma boa espécie, não fossem fibrosas e estivessem maduras. Mas a única coisa que parece corroborável é que Mao terá decidido distribuir as mangas por algumas equipas e instituições que, em Pequim, andavam a popularizar junto das massas populares os conceitos do Pensamento Maoista. Dizia-se em surdina que estas equipas estavam a tentar controlar os estragos dos excessos de dois anos de Revolução Cultural cometidos pelos omnipresentes Guardas Vermelhos, que se haviam habituado a exibir orgulhosamente o seu perfeito domínio do pensamento maoista, exibindo ostensivamente o Livrinho Vermelho quando das suas actuações.
Mas comentava-se discretamente que as criaturas - Guardas Vermelhos - haviam escapado ao criador - Mao. A interpretação rebuscada do gesto da redistribuição das mangas foi assim levada à conta de um apoia à actuação correctiva das tais novas equipas que apareceram nesse Verão de 1968. Se calhar, a intenção pode nem ter sido essa. Mas o que interessa para a continuação desta história é que as equipas e as instituições que receberam as mangas se sentiram profundamente lisonjeadas pela atenção demonstrada pelo Grande Timoneiro e trataram cada manga recebida com o desvelo com que se trataria uma relíquia budista. Porém, as relíquias, não só apenas as budistas, mas as de todas as outras confissões, têm uma tendência natural para se multiplicarem. Também o mesmo se suspeita terá acontecido às mangas ofertadas pelo camarada Mao. De facto, não há nada mais parecido com uma manga paquistanesa do que uma outra da China.
No reportório das grandes asneiras inverosímeis que se contam a propósito deste episódio, o maior será talvez a novidade absoluta que constituiria a manga para os chineses, se o fruto é descrito por autores chineses pelo menos desde o Século VII (e quando a China é o 2º maior produtor mundial de mangas, depois da Índia...). Poderia ser um produto raro, mas não desconhecido. A preservação das mangas doadas por Mao levantou um conjunto de problemas daqueles com que o marxismo-leninismo gosta de se defrontar - recorde-se o problema da múmia de Lenine... e a do próprio Mao. Apesar das vontades mais revolucionárias, com as mangas não se conseguiu chegar a tanto... Na esmagadora maioria dos casos apodreceram naturalmente e houve que fazer umas réplicas em cera, entretanto desaparecidas na voragem da História assim como as memórias de alguns momentos mais caricatos da Grande Revolução Cultural Proletária.

18 maio 2016

AS CARTAS DESENCANTADAS DA PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL (2)

Nestes pequenos apontamentos pessoais sobre a Primeira Guerra Mundial divido-me sempre entre o rigor de os publicar cumprindo escrupulosamente o seu centenário e a satisfação da curiosidade do desfecho das suas vidas por parte de quem lê estes apontamentos. Sobre os namorados Paul Hub e Maria Thumm do poste anterior cumpre-me acrescentar, sem esperar por 2018, que eles sempre acabaram por casar, a 11 de Junho de 1918, quando de uma licença de Paul, conforme se vê na fotografia acima. Paul está fardado, com espada de oficial, ostentando as condecorações (a famosa Cruz de Ferro) e envergando o tradicional pickelhaube com que partira para a guerra, mas que as realidades da mesma haviam tornado num adereço de cerimónia (substituído pelo stalhelm). Na sua carta de 18 de Agosto, quando a sua unidade estava posicionada perto de Amiens, lia-se:

Minha querida Maria:
Quase me esquecia de te escrever hoje. Nunca me acontecera antes. Normalmente arranjo um período mais calmo para ti. Fico sempre desconfortável quando não posso, porque não quero que qualquer coisa se intrometa entre nós. Esta tarde apercebi-me que consigo redigir-te uma pequena nota quando da chegada da comida, por forma a não te deixar sem notícias. Fomos flagelados hoje, e infelizmente um dos meus homens foi morto, atingido directamente por um tiro que o desfez. As flagelações são realmente horríveis, por vezes tornam-se num bombardeamento contínuo. Tudo treme e eu penso no quão pacificamente vocês dormem aí.
Tenho que te mandar a carta esta noite. A noite anterior foi muito agitada. Houve explosões constantes à volta das nossas posições e novo tiroteio esta manhã quando um dos nossos homens se aproximou dos Tommies (alcunha dos britânicos). Vocês parecem estar bastante ocupados a julgar pelas vossas cartas (as colheitas, muito provavelmente). Os meus país devem estar muito contentes por terem o teu auxílio. Por favor, lembra-te do que te disse na minha última carta.

Foi a última de uma longa série de cartas ao longo de quatro anos de Paul para Maria, a noiva que ele sempre receou tornar viúva. Contas feitas, eles só estiveram juntos alguns dias dos pouco mais de dois meses em que estiveram casados. Paul morreu algures num dos últimos dias de Agosto de 1918 perto de Maricourt. Com ele morreu o terceiro (abaixo) dos quatro filhos (mais uma filha) de Friederike e Konrad Hub, o mestre-escola de Stetten-im-Remstal.

AS CARTAS DESENCANTADAS DA PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL (1)

Há precisamente cem anos, o alemão Paul Hub de 25 anos, um dos voluntários que se apresentara em Agosto de 1914 para combater e que na ocasião frequentava um curso para promoção a oficial na cidade de Ulm, escrevia esta carta à sua noiva Maria Thumm:

Ulm, 18 de Maio de 1916
Querida Maria:
Como eu gostaria de te ter aqui comigo para que falássemos a respeito da tua comprida carta. Um casamento de guerra! Penso nisso tantas vezes. Cada hora que passa é uma hora de felicidade que se perdeu para sempre. Mas não devo pensar por agora em casamento porque não ganho ainda o suficiente.
E depois há a minha preocupações sobre poder ficar aleijado. Maria, tu dizes-me para não me preocupar com isso. Mas eu tenho que o fazer. Se ficares agarrada a mim, o que é que há de ser da tua vida? Eu sei que tu tudo sacrificarias por mim, assim como eu o faria por ti, mas o sacrifício seria demasiado.
Tens que me acreditar quando te digo que preferiria ter-te por minha mulher agora do que adiar para amanhã. Mas penso que nas presentes circunstâncias é demasiado precipitado. Não me leves a mal que eu responda à tua carta tão querida com estes pensamentos.
 
As preocupações de Paul Hub explicam-se depois de 21 meses de guerra e de esgotado o entusiasmo inicial que o arrebatara a ele, Paul, e aos dois irmãos, Otto e Robert, para a guerra. Os dois irmãos tinham morrido ambos, entretanto, na Frente Leste, enquanto Paul tinha sido incorporado no 247º Regimento de Infantaria de Reserva de Württemberg (a família era originária de Stetten-im-Remstal), unidade que se estreara em combate na Frente Ocidental na primeira Batalha de Ypres no Outono de 1914. Paul Hub tivera sorte e distinguira-se: recebera a Cruz de Ferro de 2ª Classe por feitos em combate. Mas nas trincheira parecia não haver sorte que sempre durasse: em 8 de Maio de 1915 Paul Hub foi ferido gravemente por estilhaços de shrapnel e teve que ser evacuado para um prolongado período de recuperação. Tornado um veterano por seis meses intensos de Frente, foi seleccionado para frequentar um curso de promoção. Não deixa de ser irónica a preocupação manifestada na carta quanto às possibilidades de ficar aleijado. Na verdade, por causa de uma acidente de infância, Paul Hub ficara com uma perna mais curta que outra e coxeava. Não se tivesse voluntariado e dificilmente teria sido mobilizado para as trincheiras. Daqui por três meses revê-lo-emos em acção já como oficial no Somme, onde os Aliados haviam lançado uma ofensiva. Estas cartas de 1916 de veteranos que regressam à guerra, que já sabem em que é que ela consiste, já perderam o entusiasmo dos primeiros meses de 1914, mas ainda lhes falta a saturação das cartas de 1918.

17 maio 2016

GRÁFICOS - 2

Os gráficos da The Economist também costumam ser manipulados, mas são-no com categoria. Se o leitor não se importar de regressar ao poste anterior, poder-se-á perguntar que critério se escolheu para a selecção dos 16 países incluídos no gráfico. O porquê da ausência dos dados sobre os professores da Alemanha, mas também a razão para a omissão dos países da Europa de Leste e os de economias emergentes como o Brasil, o México ou a Turquia. No mínimo, o aspecto do gráfico alterar-se-ia e talvez os professores portugueses já não se contassem entre os proporcionalmente mais mal pagos. Mas a escala dos valores dos eixos das abcissas e das ordenadas é rigorosa.
Os gráficos da RTP, que recentemente tanta celeuma têm provocado, é que nem isso. Acima, as barras que representam os 3,4%, 1,0%, 1,6% ou 1,3% do estrangeiro têm todas a mesma dimensão, aquilo que vale a pena destacar é mesmo, e só, os anémicos 0,8% do crescimento português. Assim nem dá luta, deduzem-se facilmente as explicações do João Adelino Faria, é um gato escondido com rabo de fora. Também José Rodrigues dos Santos nem precisa explicar um gráfico em que os seis anos de Sócrates (de 2005 a 2011) têm uma dimensão dupla de quase o mesmo período precedente e sequente (custou a passar, foi?). E o eixo das ordenadas (abaixo) está obviamente distorcido.
O problema aqui é que, ao contrário do que é a tradição, em que é costume os jornalistas acusarem os políticos de incompetência, são agora os políticos a acusarem os jornalistas de incompetência e, azar o deles, aqui até me parece que têm razão... Por muito que os jornalistas se queixem que os objectivos dos políticos sejam políticos. A novidade é que com tal incompetência os políticos conseguem convencer mais facilmente a opinião pública que os objectivos dos jornalistas são tão políticos quanto os deles. Uma merda, portanto, em que já não se sabe muito bem quem é quem e quem faz o quê. Não é verdade que, para prolongar a sua carreira política, Paulo Portas se foi inscrever na TVI?

GRÁFICOS - 1

Eu sei que os artigos da The Economist costumam ter sempre uma agenda. A vantagem para a sua credibilidade é que a agenda não é doméstica. É por isso que, quando num gráfico da revista aparece qualquer referência ao nosso país eu tendo a avaliá-la com merecida atenção. Neste quadro acima, onde os professores portugueses são avaliados em remuneração relativa e em carga de trabalho horário com os de outros 15 países da OCDE, percebe-se que lhes assistem razões de queixa: são dos que trabalham mais horas (abcissas) e também dos que ganham comparativamente pior (ordenadas) do que os seus homólogos. Em simpatia para com as suas reivindicações, vale pelas intervenções televisivas dos próximos doze meses de Mário Nogueira - que, por sinal, tem andado muito calado...

16 maio 2016

WALTHER FUNK E A NOVA ORDEM ECONÓMICA EUROPEIA

A notoriedade mediática crescente de José Gomes Ferreira, associada à gaffe recente dos holandeses que o transformaram num virtual ministro das finanças português, fizeram-me lembrar Walther Funk, o ministro da Economia (Reichswirtschaftsminister) do III Reich entre 1938 e 1945. Walther Funk fora um ambicioso jornalista que se especializara em questões económicas, cuja carreira sofrera uma inflexão significativa a partir dos 40 anos, quando em 1931 se desligou do jornal para onde trabalhava e se filiou no partido nacional socialista (NSDAP). Funck começou por ser deputado, depois foi ocupando cargos de maior responsabilidade mas foi um ministro cuja carreira, mesmo no seu apogeu, decorreu sempre à sombra do todo poderoso Hermann Goering (o que não o impediu de vir a ser julgado e condenado no tribunal de Nuremberga). Isso não o impedia de gostar de produzir discursos e de gostar de se rodear de equipas de trabalho que pensavam muitas coisas para o futuro da Europa depois da vitória alemã. Não fossem as circunstâncias e o teor de alguns discursos de Funck qualificá-lo-iam para um dos pais fundadores da Europa, com temas como a reconstrução europeia, o pragmatismo alemão, o planeamento a uma escala continental ou a contribuição para a criação de um sentido de comunidade económica mais forte entre as nações europeias. Nesses anos iniciais da Segunda Guerra Mundial, quando a iniciativa ainda pertencia à Alemanha, iniciativas patrocinadas pelo Reichswirtschaftsministerium reuniram dirigentes empresariais alemães, holandeses, belgas e suecos de onde saíram recomendações integracionistas que antecipavam estranhamente (ou não) algumas, das ideias (re)propostas quando da constituição da CEE - por exemplo, a importância do estabelecimento de pautas aduaneiras comuns para as importações que fossem provenientes de fora da Europa. Nos seus discursos Walther Funk mostrava-se um discípulo dilecto da escola económica alemã, onde eles conseguem elaborar em profundidade sobre os problemas económicos abstraindo-se das suas implicações políticas e ideológicas. Sobre os economistas alemães, diz-se a propósito e em jeito de laracha que, sobre o keynesianismo, eles se desdobram em dois grupos: os que não leram Keynes e os que não o perceberam. Naquela altura, quando questionaram John Maynard Keynes sobre o conteúdo dos discursos pan-europeus de Walther Funk, a sua resposta foi significativa do que os distanciava: por ele, não havia nada de mal em planear a recuperação europeia (estava-se em 1941/42), o grande problema era saber se se poderia confiar num regime autocrático como o nacional socialismo alemão para a promover. O tempo e a evolução da guerra vieram dar razão a Keynes, porque as (boas) intenções de Funk tiveram que se ir diluindo, a atitude da Alemanha tornou-se cada vez mais coerciva sobre as economias dela dependentes para as submeter às necessidades prementes da Guerra e aos ditames de Adolf Hitler. Hoje, apesar da proliferação de alertas contra o fascismo, parece-me que não há Hitlers mas o espaço aparece-me repleto de Funks que continuam a acreditar que há uma espécie de economia que se apresenta decantada de qualquer implicação política e/ou ideológica.