17 março 2016

DEDICADO AOS XENOFONTES QUE AVALIAM AS RETIRADAS SEM CONHECER AS TROPAS


Em 30 de Maio de 1974, pouco mais de um mês depois do 25 de Abril, uma equipa da televisão francesa (ORTF) entrada clandestinamente em território guineense realiza esta entrevista a Francisco Mendes, um dos comandantes militares do PAIGC, mais conhecido pelo nome de guerra de Chico Té. Desde há duas semanas que vigorava um cessar fogo no território. O teor das suas declarações - que se podem ler mais abaixo - são um testemunho da época, da autoconfiança arrogante dos nacionalistas africanos que depois do golpe de Estado em Portugal se passaram a sentir - provavelmente com razão - como os vencedores do conflito que os opusera a Portugal ao longo do decénio precedente. O revisionismo como hoje se reanalisa a época e as especulações quanto às condições em que se poderia ter realizado a descolonização raramente tomam em conta esta atitude contra a qual os negociadores pela parte portuguesa se confrontaram, para além de se esquecerem que, entre as tropas portuguesas que poderiam disciplinar no terreno Chico Té e os seus homólogos tanto na Guiné como nos outros Teatros de Operações, desaparecera subitamente todo o ânimo combativo a partir do momento em que se começara a falar da descolonização. Perante o anúncio do fim de uma guerra, ninguém quer ser o seu último morto. Retirar disciplinadamente, como já explicava Xenofonte na Anábase do tempo da Grécia clássica, foi sempre uma das operações mais complexas de realizar sob a pressão do inimigo... Chico Té veio a falecer em 1978, quatro anos depois desta entrevista, num desastre de automóvel cujas circunstâncias ainda hoje estão sujeitas a interrogações. A história encarregou-se de vingar a sobranceria de algumas das suas declarações, a começar pela forma como quase faz o favor de se dispor a acolher uma eventual futura cooperação portuguesa... Quanto a isso, hoje a Guiné-Bissau passa por ser um caso perdido.

- Considero que o general Spínola, que empregou entre nós todas as suas táticas de guerra contra-subversiva para vencer a nossa luta em dois e depois em quatro e cinco anos, acabou por registar um fracasso total. Consideramos que a sua presença entre a nova equipa (dirigente) de Portugal no que respeita à nossa realidade e à do nosso partido, e quanto a qualquer decisão dos portugueses, ele conhecer-nos-á possivelmente melhor do que os restantes em Portugal.
- Que é que vai acontecer em sua opinião?
- Pensamos que depois do cessar-fogo, como já o disse, é necessário que as tropas portuguesas abandonem definitivamente o nosso país. Depois disso, pensamos continuar a luta, seja na Guiné no plano da construção do país, seja em Cabo Verde para libertar as ilhas de Cabo Verde da dominação portuguesa...
- Já fixaram um calendário para a evacuação das tropas portuguesas?
- Ainda não ficámos um calendário para a evacuação das tropas portuguesas porque isso depende das negociações em Londres.
- E que concessões estão disponíveis para fazer a Portugal?
- Em todas as negociações há sempre concessões que se têm de fazer e actualmente não me vou pronunciar clara ou concretamente sobre as concessões que estaremos dispostos a fazer, porque isso dependerá também da vontade dos portugueses, das propostas que nos vão apresentar.
- Tem impressão que eles estão mesmo dispostos a descolonizar, os portugueses?
- Sim temos a impressão que eles estão prontos para descolonizar, pensamos que a nova equipa (dirigente) quer realmente descolonizar mas isso depende também de muitos factores do ponto de vista económico, por exemplo em Angola e Moçambique, nesses sítios onde eles têm grandes interesses, grandes capitais estrangeiros mas onde, de uma forma ou outra, pensamos que estão decididos a descolonizar.
- E como é a situação no terreno aqui na Guiné?
- Nós temos os organismos do Estado já instituídos em todas as regiões e que funcionam normalmente.
- Que parte do território é que vocês controlam?
- Nós controlamos efectivamente ⅔ do território mas há uma grande parte dele que está em litígio.
- E que proporção da população?
- Pode-se dizer por estimativa 350 mil pessoas.
- Ou seja, a metade?
- Sim, a metade, porque há uma outra parte considerável que está refugiada no Senegal e na República da Guiné; há ainda uma pequena parte que está sob controle dos portugueses.
- O que é que é negociável?
- A retirada das tropas portuguesas do nosso país, por exemplo uma futura cooperação com Portugal é negociável. Uma assistência, por exemplo, em que Portugal pode-nos fornecer quadros técnicos, do ensino, operários; o que não é negociável é a dignidade do nosso país, a independência.
- E se os portugueses vos propuserem que se proceda a um referendo quanto à autodeterminação, aceitariam?
- Pensamos que é absurdo que os portugueses nos proponham esse princípio porque não pode existir um voto a perguntar à população se ela quer ser independente ou se não o quer, porque a prova existente é esta luta de onze anos que nos parece uma enorme prova que a população deseja a independência.
- E se não houver acordo entre os movimentos independentistas de Angola e Moçambique e Portugal e se nesses dois territórios a guerra continuar? Que farão nesse caso? Serão solidários ou farão um acordo, mesmo assim, com os portugueses?
- Pensamos que Portugal não pode pretender que concedendo-nos ou mesmo aceitando aquilo que apresentámos para a nossa independência, se pode permitir a continuar a guerra nas outras colónias portuguesas.

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