16 janeiro 2015

A GUERRA DA INDEPENDÊNCIA DA ERITREIA

Quando a Assembleia Geral da Organização de Unidade Africana (OUA), organização sedeada em Adis Abeba (capital da Etiópia) no edifício da fotografia acima, aprovou na sua primeira assembleia geral em Julho de 1964 a intenção de adoptar o princípio de defender as fronteiras herdadas do período colonial, a ideia era diplomaticamente asizada apesar de aparentemente paradoxal – contornavam-se daquela forma as dezenas de conflitos potenciais que resultavam de fronteiras que haviam sido, numa esmagadora maioria das vezes, artificialmente traçadas pelas potências administrantes sem qualquer consideração pelas populações. Um pormenor escapava, porém, à esmagadora maioria dos observadores que elogiavam o pragmatismo das jovens nações africanas. É que, do ponto de vista moral e formal, aquela prudente resolução podia lesar, num caso particular, o próprio país que albergava a sede da OUA – a Etiópia.
A Etiópia era, com a Libéria (as duas regiões assinaladas a cinzento no mapa anterior), uma das duas únicas excepções de países africanos que nunca haviam sido formalmente colonizados (ou semi-colonizados, como foi o caso, por exemplo, do Egipto) durante o período de auge do colonialismo. Chegara a resistir militarmente em 1896, à tentativa italiana em a submeter. Gozava por isso de uma proeminência entre as jovens nações africanas a que não era estranha, de resto, a escolha da sua capital para sede da, também jovem, organização que as reunia depois da avalancha de independências no continente – a OUA. Porém, por causa dessa História peculiar e apesar das suas debilidades de desenvolvimento, o percurso da Etiópia durante o período do predomínio europeu sobre o continente africano, desde os finais do Século XIX até ao final da Segunda Guerra Mundial, caracterizara-se pela duplicidade: a Abissínia – como então se chamava – também se associara às partilhas coloniais, crescendo para territórios que nunca havia sido seus – caso das regiões somalis do Leste.
Outro caso em que os etíopes poderiam ser equiparados a colonizadores – estatuto muito mal visto (compreensivelmente) pela OUA - era o das suas relações com a Eritreia. A Eritreia fora uma colónia italiana desde a última década do Século XIX. Servira-lhes de base logística para os dois assaltos que os italianos haviam lançado para a conquista e colonização da Etiópia: o primeiro – fracassado – em 1896; o segundo – bem-sucedido – em 1936. Em 1945, finda a Segunda Guerra Mundial, a Etiópia apresentava-se como uma das primeiras vítimas das expansões dos países do Eixo; a Itália como um desses algozes, agora derrotados. Pareceu ser da mais elementar justiça que a ONU, sob patrocínio norte-americano, concedesse à primeira a Eritreia como uma espécie de compensação territorial, oferecendo à Etiópia uma saída para o mar (ver mapa), embora a identidade da Eritreia fosse preservada através de um regime federal (1952). Porém, a autonomia daquela nunca se concretizou e era invocando essa falta que a Frente de Libertação da Eritreia (FLE), organização aparecida em 1960 no Cairo pedia cinicamente o respeito pelas fronteiras coloniais preconizadas pela OUA, respeito esse que, se cumprido no seu sentido estrito, poderia conduzir a Eritreia à independência.
Mas todas as causas, para vingarem, têm de ter algo mais para além de uma lógica irrepreensível. Os tempos eram favoráveis às causas nacionalistas mas não a todas – como se iria ver posteriormente com o exemplo da causa da secessão do Biafra (1967-70). No caso da independência da Eritreia, pelos padrões da mensagem terceiro-mundista então em voga, a causa parecia incongruente. Os africanos em geral tinham estado todos submetidos ao jugo colonial europeu; os etíopes também, embora em menor escala, apenas a partir de 1936. Ora, no caso da Eritreia, a vítima etíope era também o carrasco, gerando aqueles desconfortos com que as grandes causas nunca gostam de lidar (veja-se o problema em concreto quando o Bangladesh se revoltou e ganhou a independência contra o colonialismo paquistanês em 1971). É assim que se justifica que as acções de guerrilha desencadeadas pela FLE ao longo da década de 1960 contra o governo etíope passassem completamente desapercebidas fora da Etiópia, ofuscadas por outras politicamente mais nobres, nomeadamente as que envolviam os movimentos nacionalistas africanos das colónias portuguesas.
Havia outros dois factores, um exógeno e outro endógeno que contribuiriam ainda mais para a discricionariedade dos combates do nacionalismo eritreu. Por um lado a Etiópia dessa época (até 1974) conseguia conjugar a benevolência das duas principais superpotências. Os Estados Unidos haviam consistentemente apoiado o regime imperial de Hailé Selassié e a União Soviética herdara – e não renegara – uma posição ambígua da Rússia quanto ao xadrez político regional, em que procurara usar a religião ortodoxa comum a etíopes e russos como factor de influência – já o exército etíope que derrotou os italianos em 1896 contava com assessores militares russos. Com isso, a luta dos eritreus não se encaixava no quadro geral da Guerra-Fria e os apoios materiais recolhidos pela FLE para a sua luta ressentiam-se. Por outro lado, a FLE começara por implantar-se em regiões muçulmanas, em aí recrutar o maior número dos seus seguidores e em sedear-se no Cairo, dando à organização uma desmesurada (e contraproducente) influência confessional: entre 50 a 60% da população da Eritreia é cristã e o cristianismo predomina nas terras altas, as regiões da Eritreia mais propícias à actividade de guerrilha. Havia um conflito confessional latente nas fileiras do nacionalismo eritreu.
Na primeira metade da década de 1970, este quadro sofreu uma substancial alteração: porque apareceu uma outra organização, a Frente Popular para a Libertação da Eritreia (FPLE), uma dissidência da FLE, com uma muito maior proporção de quadros e militantes cristãos, atraídos pelo teor político muito mais radical das suas propostas; porque simultânea e paradoxalmente, se deu um golpe de Estado também politicamente radical na Etiópia (1974), realinhando-a entre os aliados da União Soviética. Entre 1972 e 1974 houve uma espécie de guerra civil entre as duas principais organizações da guerrilha da Eritreia, com a FPLE a superiorizar-se a FLE. E a partir de 1974 houve outra espécie de guerra civil multipolar por toda a Etiópia enquanto várias facções dos militares que haviam dado o golpe de Estado em Adis Abeba se disputavam, enquanto o país era simultaneamente dilacerado por várias forças centrífugas de guerrilhas nacionalistas nas várias regiões periféricas, para além da própria Eritreia – o Tigray e a Somália (veja-se o mapa abaixo) eram os dois exemplos mais importantes.
Mas, apesar de debilitado, o (novo) aliado soviético do regime militar de inspiração marxista-leninista instalado em Adis Abeba¹ mostrou, em mais do que uma ocasião e nas várias frentes com que se confrontava, como aquela superpotência não estava disposta a que os seus aliados colapsassem. Foi o que aconteceu, por exemplo e mais ostensivamente com a Guerra do Ogaden (1977-78), quando uma Somália incentivada e apoiada materialmente pelos Estados Unidos invadiu a Etiópia oriental (onde os somalis estão em maioria e onde existia uma Frente de Libertação local), com o intuito de redesenhar aquela fronteira em seu proveito. Os combates assumiram uma faceta de guerra convencional decalcada da doutrina táctica soviética, com colunas e embates de blindados, apoiados por artilharia, em que as formações etíopes, ainda inexperientes no manejamento do material pesado recentemente enviado pelos soviéticos tinha que ser substituído por formações cubanas, como se constata do vídeo abaixo, onde um desses prisioneiros cubanos é exibido pelos somalis.

Mas essa era a guerra na Etiópia que, pela sua espectacularidade concitava as atenções da média mundial. Na Eritreia, a situação era igualmente grave para os etíopes, embora de uma forma muito mais discreta. Em 1977, Massawa, a terceira cidade e o porto mais importante da Eritreia (e por isso da Etiópia) encontrava-se completamente cercada por terra pelas forças da FPLE. Em Dezembro desse ano, querendo aproveitar a estação fresca (o que equivale a uma temperatura média entre 20 e 25ºC...), a FPLE desencadeou uma ofensiva para conquistar Massawa, onde também se localizava a principal base naval da marinha de guerra etíope. Mas os navios soviéticos acostados à base naval não hesitaram em empregar a artilharia de bordo para intervir em favor dos defensores etíopes. Mais do que o significado táctico da batalha (a FPLE teve que retirar porque não dispunha de um poder de fogo – foto abaixo - que se equiparasse ao dos navios soviéticos), a lição que se tornou importante reter para os dirigentes da FPLE foi o compromisso estratégico dos soviéticos de apoiar os seus aliados em todos os conflitos em que estava envolvido.
Depois da lição de Massawa, três características irão marcar a actuação da Frente Popular para a Libertação da Eritreia (FPLE) nos 15 anos que se seguirão até à vitória do nacionalismo eritreu. A primeira é uma acentuada conflitualidade interna, cheia de dissidências, purgas e mesmo execuções de militantes de topo, a fazer lembrar – para quem conhecer – aquilo que acontecera com a FLN argelina na década de 1950. A segunda era incorporar as lições retiradas depois das batalhas de Massawa e de Barentu: manter permanentemente a actividade insurreccional nas regiões não controladas mas fazê-lo de uma forma discreta que não parecesse ameaçar seriamente os etíopes e chamar a atenção dos soviéticos. E finalmente, a terceira, adquirir prestígio internacional, criando nas zonas por si controladas um esboço de administração, a começar por uma capital (chamada Nakfa – a fazer lembrar a contemporânea Jamba da UNITA, em Angola).
É óbvio que a criação de uma posição estática e de prestígio - acima, o campo de aterragem - cria teoricamente um alvo para as ofensivas das forças armadas adversárias, mas o histórico demonstra que: a) compete aos inimigos assumir e montar a ofensiva para chegar a essas capitais provisórias e isso nem sempre é bem-sucedido (afinal os angolanos e os cubanos nunca chegaram a conquistar a Jamba à UNITA); b) mesmo que seja bem-sucedido, quando os vencedores lá chegam, a dita capital já teria sido evacuada (era o que teria acontecido aos portugueses, se se tivessem disposto a reconquistar Madina do Boé na Guiné-Bissau). Na Eritreia, a defesa de Nafka foi pretexto para a criação de algumas epopeias na defesa da sua capital contra os etíopes. A lista dos financiadores da guerrilha da FPLE também ficara a ganhar muito com a mudança de regime em Adis Abeba em 1974 – contando agora com os Estados Unidos e com as monarquias árabes do Golfo Pérsico. O regime etíope mantinha-se mas não conseguia erradicar a subversão na Eritreia enquanto o empenho internacionalista dos soviéticos diminuía a cada ano que passava daquela década de 1980 por causa das baixas que ia sofrendo no Afeganistão. Simbólica e significativamente, uma segunda batalha travada em Massawa em Fevereiro de 1990, doze anos após a anterior e já depois da queda do Muro de Berlim, teve o desfecho inverso: a guarnição etíope foi escorraçada da cidade, um feito hoje lembrado no monumento da foto abaixo, situado no meio da cidade.
Em Maio de 1991, o regime marxista-leninista etíope instalado em Adis Abeba colapsou por completo com a fuga do seu homem forte, Mengistu Haile Mariam. Durante dois anos (1991-93) a Eritreia viveu num limbo político, um estado de facto – a FPLE apoderou-se das cidades que ainda não controlava nas quais as desmoralizadas guarnições etíopes não opuseram qualquer resistência – mas ao qual faltava o reconhecimento internacional. Este chegou em Abril de 1993, legitimado por um referendo em que 99,8% dos eleitores optaram pela independência. Mas, para que não se pense que a História que conduziu à Independência da Eritreia acaba bem, com um final feliz, acrescente-se que desde então – há quase vinte e dois anos, portanto - o país só teve um dirigente, Isaías Afwerki, e um partido no poder, evolução desmilitarizada da FPLE, a Frente Popular pela Democracia e pela Justiça – democracia e justiça que, dizem-nos organizações como a Amnistia Internacional, não têm abundado... Entre 1998 e 2000, a Eritreia e a Etiópia voltaram a defrontar-se, agora por causa da delimitação das fronteiras (abaixo) e durante os dez anos que se seguiram lá permaneceu uma força de interposição da ONU composta por 1.700 capacetes azuis. A situação permanece tensa, mas, se entre as últimas palavras de Cavour se contará alegadamente a frase A Itália existe, logo tudo está certo, no caso da Eritreia uma simplificação semelhante talvez também se justifique.
¹ Conhecido por DERG, um regime estruturalmente familiar para nós, portugueses, que vivemos o PREC, estranhamente semelhante em muitos aspectos àquele que por cá poderia ter vingado se a 25 de Novembro de 1975 tivesse ganho a outra facção (antidemocrática) do MFA.

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