12 dezembro 2014

SOBRE A CONVENIÊNCIA E INCONVENIÊNCIA DE CERTAS ALCUNHAS: A DA MICUXA E A DO COLHÃO

Há alcunhas que assentam muito bem. Nomes que, mesmo sem conhecermos os proprietários, têm o condão de nos fazer bulir as memórias, gerando um toque indefinível de familiaridade e fazendo-nos interrogar: - Onde é que eu já ouvi este nome? Ainda muito recentemente, isso aconteceu com um dos nossos colegas destas andanças, quando se referiu à Micucha, pessoa que não sendo das minhas relações, tem uma alcunha que me provocou ressonâncias que me levaram, por sua vez, à investigação: lá dei por ela, fotógrafa do casal Vasco Correia Guedes/ Maria Filomena Mónica nos dias que se imediatamente se seguiram ao 25 de Abril, embora numa outra grafia (Micuxa), quiçá mais plebeia mas por isso mesmo indiscutivelmente mais adequada aos dias que então se viviam. Sobre a sociologia das alcunhas de sociedade suponho não haver muito a acrescentar a uma crónica genial escrita por Miguel Esteves Cardoso vai para uns 25 anos, onde ele, depois de uma aturada investigação das páginas da Olá! (acima), descobriu haver uma correlação negativa entre o número de letras que compunham a alcunha e o estatuto de quem assim se deixava tratar. A grande maioria das alcunhas e dos nomes de guerra de sociedade continham de duas a quatro sílabas mas, continuava ele, uma (Távora) era já alguém muito acima do comum dos mortais, de categoria condal pelo menos, e onde no vértice superior se deveria situar alguém que se poderia designar familiarmente por . (ponto), a alcunha atrofiada que, pela lógica descoberta por Miguel Esteves Cardoso, se imporia atribuir a sua alteza real, Duarte, o duque de Bragança. Não sei é se a lógica se aplicará à Micuxa (ou Micucha), por ser uma Galvão Teles, o que a fará pertencer a uma estirpe concorrente, burguesa e republicana, onde não sei se se usam tais estratificações.
 
 
Na verdade, tenho que confessar o meu conhecimento muito superficial de qualquer daqueles dois meios, muito menos das sensibilidades do emprego apropriado das alcunhas que ali se praticam. A esmagadora maioria resultam da contracção seleccionada de nomes próprios e aparecem despojadas do retoque de humor que uma boa alcunha (como uma boa caricatura) deve ter. O meu forte são as lembranças do ambiente juvenil-castrense do Colégio Militar que se caracteriza por uma certa insolência desconforme na selecção, adopção e difusão das alcunhas. Tanta é a distinção, que o mesmo duque de Bragança que acima foi remetido para o pináculo da cortesia, passou por aquela instituição alcunhado de Agapito sem quaisquer outras deferências pela majestade da sua herança. Também por causa dessa insolência sei de algumas mães que se resignaram a abdicar (pontualmente) do nome de baptismo que haviam escolhido para o filho, compactuando com outro que fora escolhido por algum dos seus colegas em circunstâncias que desconheciam e de quem ninguém já se lembrava. Era voz corrente que mais do que uma vez houvera quem (broncos!) telefonasse para casa do Ben e pedisse à sua mãe para falar com ele (Ben), esquecido que a mãe preferira o nome próprio de Duarte quando da cerimónia junto à pia baptismal... Mas a alcunha mais difícil de gerir era mesmo a do Colhão. Uma das duas ironias da alcunha é que o proprietário original da alcunha não era ele, mas o irmão dele: ele herdara-a; a segunda ironia é que a razão para a existência da alcunha não era a existência de um colhão, mas a ausência do outro colhão, descoberta que terá sido feita em circunstâncias que nunca, porque embaraçosamente privadas, interessou esclarecer. O importante e que parecia insuperável era a forma como nos podíamos referir ao Colhão com terceiros presentes sem que a coisa parecesse grosseira.
 
 
Sim, porque embora a norma oral vigente entre alunos fosse a de um vicentismo muito para lá da franqueza do português atribuível a Gil Vicente, era simultaneamente importante diante de terceiros não se parecer grosseiro. Ainda me recordo de uma ida ao circo no Coliseu logo no meu primeiro ano de Colégio Militar, em que o graduado encarregado de tomar conta de nós nos avisou a recato e previamente para cuidarmos da linguagem: Vamos lá a ter cuidado com as caralhadas!... Regressando aos substitutos convenientes para a palavra colhão quando referindo o Colhão, descobri o mais eficaz ajudado no momento embaraçoso do gaguejo, por alguém que prestimosamente substituiu a palavra que eu não devia usar por Chico. Foi uma revelação: eu nunca soubera que o nome de baptismo do Colhão era Francisco. Mas durante os anos que se seguiram – o Chico entretanto despareceu infelizmente bem cedo de entre nós – nunca mais perdi essa impressão indelével que, quando usada em certas circunstâncias chico pode ser o código de uma palavra impronunciável. A verdade é que, quando cerca de 40 anos se passaram sobre esses dias, tenho que reconhecer que, e para regressar ao início do texto, tomar Micuxa (ou Micucha) à conta de um hipotético cacófato poder ser levado à conta de um excesso meu de imaginação, culpa da educação recebida no Colégio Militar. Para mais quando os tempos modernos já demonstraram que, embrulhando as caralhadas num suporte literário adequado como o de abaixo, elas se tornam aceitáveis.

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