04 maio 2012

A DÉCIMA COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUÉRITO... SOBRE O TEMA DO COSTUME


Mais uma vez recebi uma mensagem no correio electrónico chamando-me a atenção para um estranho e longo depoimento em que o seu autor (que assina Fernando Farinha Simões) se confessa o autor da colocação da bomba que terá explodido no avião onde seguiam Francisco Sá Carneiro e Adelino Amaro da Costa em 4 de Dezembro de 1980, causando a queda do mesmo e a morte de todos os ocupantes. Certamente por causa do interesse do tema, o assunto deixou de ser mais uma daquelas brincadeiras de internet e saltou para a comunicação social tradicional (acima). Com um deputado - Ribeiro e Castro do CDS - a levar a brincadeira suficientemente a sério para propor a criação de mais uma (a 10ª!) comissão de inquérito ao assunto.

Tornou-se uma espécie de tradição à escala mundial que todos os desastres aéreos que vitimaram altos responsáveis são, não apenas inicialmente suspeitos, mas permanecem assim mesmo depois dos mais límpidos esclarecimentos técnicos. Foi assim com o General Leclerc na Argélia (1947) ou com o italiano Enrico Mattei (1962), qualquer dos dois alegadamente por causa dos negócios escusos do petróleo, ou ainda com os presidentes moçambicano Samora Machel (1986) e paquistanês Zia-ul-Haq (1988), dispensando-se nesses casos, como acontece também com o de Sá Carneiro (1980), a necessidade duma explicação adicional para as teorias da conspiração. Ironicamente, existem os casos opostos, como o do Voo 21 da Canadian Pacific (1965), onde não existem quaisquer dúvidas que o acidente foi provocado por uma bomba, embora não se perceba qual seria o alvo dela e, consequentemente, quem possa ter sido o autor do atentado. Obviamente que estes segundos casos são muito menos mediáticos.

As teorias que apareceram de quando em quando associadas ao desastre em Camarate não serão por isso nem inéditas nem surpreendentes. Aliás o caso português notabiliza-se pelas confissões dos culpados – feitas depois da prescrição do crime. Tivemos um senhor chamado José Esteves que já há cinco anos confessou ter feito a bomba que os peritos aeronáuticos, ao contrário do Voo 21 acima, continuam com dificuldade em encontrar nos destroços. E agora, pela mão do construtor, aparece este Fernando Farinha Simões a confessar-se mandante. A questão inicial é a da oportunidade deste depoimento. Assisti no passado Domingo à pergunta a ser colocada ao professor Marcelo da TVI: a explicação dele foi – como costumam ser todas! – muito simples: porque agora os crimes já prescreveram. Na verdade, o crime já prescreveu há mais de cinco anos e fiquei desconfiado que a resposta não hostil do professor Marcelo naquelas circunstâncias se terá devido a uma questão de cortesia profissional entre criativos

Outra questão muito pertinente é a da credibilidade do depoente. Não vamos proceder a assassinatos de carácter como fez o Correio da Manhã, ao informar os seus leitores que Farinha Simões se encontra preso a cumprir uma pena de seis anos e meio de prisão por sequestro, coacção e violação de domicílio da jornalista Margarida Marante. Vamo-nos cingir ao que ficou dito e escrito no seu extenso depoimento de 215 parágrafos. O processo é simples e não devia surpreender o depoente, que reclama ter trabalhado para vários serviços de informações: aquilo que ele diz é verificado para se ajuizar da sua fiabilidade. Refere o nome de uma agente dupla chamada Uta Gerveck (§7), autora de um livro sobre a Guiné-Bissau. O livro vem a revelar-se um opúsculo de 120 páginas intitulado A luta de libertação nacional e o progresso colectivo e a senhora afinal chama-se Uta Gerweck (com w) mas a história, apesar do autor se revelar desde estes pormenores iniciais um exagerado, aguenta-se. O pior vem depois...

Se Uta Gerweck é apresentada como uma agente dupla do BND (os serviços secretos da Alemanha Federal) e da Stasi (os seus homólogos da Alemanha de Leste), o próprio Farinha Simões também se torna rapidamente noutro, trabalhando para a CIA enquanto se infiltra na Stasi, tendo tido o privilégio de conhecer o próprio nº 2 da organização leste-alemã, o legendário Markus Wolf, que se tornou tão popular através dos romances de John Le Carré! Não sendo propriamente tão exóticos quanto as obras de ficção deles fizeram, os serviços de informações não funcionarão propriamente como agências de publicidade para onde os agentes, quais publicistas, trabalharão de dia, embora também não se importem de fazer uma perninha pós-laboral na agência concorrente. Há quem diga que esses casos de traição são mesmo os casos em que a realidade da espionagem chega a ultrapassar a ficção…

Porém, para não descartar já a seriedade do autor da história anterior, para quem reclama ter privado com uma figura tão altamente colocada quanto Markus Wolf, com quem trataria de uma tarefa tão prioritária para a Stasi quanto a dos seus agentes infiltrados junto dos dirigentes de topo da Alemanha Federal, o aspecto que quero destacar dos primeiros 20 a 25 parágrafos do depoimento, em que realça sobretudo a importância material da sua actividade na CIA, é a ausência de uma perspectiva idêntica quanto aos objectivos do seu trabalho para a Agência norte-americana. Na verdade, quando se conhece alguma coisa deste mundo dos serviços secretos, sabe-se que nos anos dos finais da década de 1970 a que Farinha Simões de refere, no quadro das transformações desencadeadas pela administração democrática do Presidente Jimmy Carter (1977-1981), a CIA, sob a tutela do Almirante Stansfield Turner, estava a sofrer uma profunda alteração nos seus métodos, privilegiando a informação que lhes chega por via técnica (Techint) ou pela intercepção de comunicações (Sigint) em detrimento dos tradicionais espiões (Humint). Exemplificando, de uma penada em 1979, Turner despediu 820 espiões em todo o Mundo, numa decisão de que se viria a arrepender amargamente quando da Crise dos Reféns no Irão.

E é a uma organização dominada por esta orientação concentracionária de redução de custos que Farinha Simões quer atribuir a iniciativa e a responsabilidade de um atentado contra um ministro de um país aliado (da NATO) a pretexto de negócios com armamentos de que a parcela de Portugal apenas representaria uma percentagem insignificante? E há quem o leve a sério porque ele acrescenta elementos novos? Será que as pessoas que lêem os disparates ditados por Farinha Simões não conseguem sequer avaliar a plausibilidade do que ele lá descreve? Como já aqui escrevi, a propósito da Suécia, onde nunca se descobriu quem assassinou o 1º Ministro Olof Palme, uma democracia não fica bem na fotografia mas não se cobre de ridiculo por não conseguir levar a julgamento quem lhe assassinou o seu dirigente máximo. O ridículo expressa-se quando pessoas que deviam passar por responsáveis, a pretexto de (mais) um depoimento delirante, se dispõem a nomear (mais) uma comissão de inquérito para inquirir se isso realmente aconteceu ou não… É caso para parafrasear o slogan do Pingo Doce, só que em vez do sítio do costume, é a 10ª(!) Comissão Parlamentar de Inquérito... sobre o tema do costume.

1 comentário:

  1. Aqui está uma análise muito interessante. Mais uma das várias teorias da conspiração.

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