13 março 2011

DEDICADO AOS ENTUSIASTAS DA MANIFESTAÇÃO DOS «À RASCA»

Não me apercebi que ontem tivesse havido algum discurso durante a manifestação dos à rasca. Se calhar houve, mas não foi transmitido por quem dedicou várias horas à cobertura do evento e, por outro lado, não descubro vestígios dele (ou deles) entre os blogues daqueles que se mostram mais entusiasmados com os acontecimentos. Em sua substituição deixem-me apresentar-vos este outro discurso que, tenho a certeza, não destoaria se tivesse sido lido ontem aos manifestantes à rasca:
Não preciso de lhes dizer como as coisas estão más.
Todos a gente sabe que as coisas estão más.
Está-se numa recessão.
Toda a gente está desempregada ou com medo de perder os seus empregos.
O dólar agora compra coisas que comprávamos por dez centavos.
Os bancos abrem falência, os comerciantes guardam uma arma por detrás do balcão.
Os criminosos passeiam-se à vontade pela rua
E não aparece ninguém que saiba o que fazer nem um fim à vista para isto tudo.
Sabemos que o ar que respiramos não é adequado, a comida que comemos também não
E que nos sentamos diante da TV enquanto o jornalista do ecrã nos informa que hoje houve quinze homicídios e ainda mais sessenta e três crimes violentos.
Como se isso fosse a coisa mais natural do Mundo.
Todos a gente sabe que as coisas estão más, pior que más.
É uma loucura, como se tudo por todo o lado fosse enlouquecer.
E é por isso que já não saímos, ficamos em casa e formatamos o Mundo em que vivemos cada vez mais à nossa pequena dimensão.
E o máximo que conseguimos reagir é quando dizemos:
Por favor, pelo menos deixem-nos sozinhos nas nossas salas de estar
Deixem-me ter a minha torradeira, a minha televisão, os pneus radiais do meu carro e eu deixo-me ficar calado.
Deixem-nos em Paz!
Bom, eu não tenho intenção de os deixar em Paz. Eu quero que vocês fiquem furiosos. Eu não quero que vocês protestem. Nem que vocês se revoltem. Nem que escrevam aos vossos deputados, porque até lhes poderia dizer o que deviam escrever.
Eu não faço a mínima ideia do que fazer a respeito da recessão. Da inflação. Dos russos. Do crime nas ruas.
O que eu sei é que, antes disso, é preciso que se enfureçam. Têm de dizer:
Sou um SER HUMANO, PORRA!!! A minha vida é VALIOSA!!!
Assim… quero que vocês se levantem. Quero que se levantem das vossas cadeiras. Quero que se levantem neste preciso instante. E que se dirijam para a janela, abram-na e pondo a cabeça bem cá fora gritem:
ESTOU FURIOSO COM´O CARAÇAS E NÃO VOU ATURAR MAIS ISTO!
Só depois é que iremos descobrir as soluções para a recessão e a inflação e a crise do petróleo.
Mas primeiro levantem-se das vossas cadeiras, abram a janela, ponham a cabeça cá fora e gritem, digam-no:
ESTOU FURIOSO COM´O CARAÇAS E NÃO VOU ATURAR MAIS ISTO!

Embora o teor do discurso se enquadre perfeitamente no tom de lamento contra tudo e todos e sem uma matriz ideológica precisa como me pareceu que acontecia com os manifestantes de ontem, o texto não poderia ser utilizado porque pertence a uma cena famosa do filme Network (1976), cujo argumento é uma sátira corrosiva à promiscuidade que se pode estabelecer entre informação e espectáculo em televisão. Que foi o que aconteceu ontem à tarde na cobertura informativa daquela manifestação…

3 comentários:

  1. Partilho da opinião da Sofia: Oportuno e brilhante. "As usual"

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  2. E eu sou mais uma que agradece o excelente post!

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  3. Alguma parte dos elogios serão para atribuir ao autor e intérprete originais daquele dilerante discurso, respectivamente "Paddy" Chayefsky e Peter Finch.

    A ambos seriam atribuidos os Óscares da sua categoria.

    Que não nos façam passar por original aquilo que é obviamente reciclado.

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