14 agosto 2010

OS HOMENS DO PRESIDENTE, UMA REALIZAÇÃO DOS ESTÚDIOS WALT DISNEY

No passado dia 9, em jeito de efeméride, evoquei o discurso de há 36 atrás em que Richard Nixon se demitiu do cargo de Presidente dos Estados Unidos e, por arrasto, o Caso Watergate, que esteve por detrás do gesto. E em jeito de contraste, adicionei uma fotografia do funeral de François Mitterand, com as suas duas famílias, evocando-as e, por arrasto, a todos os outros segredos que ele protegeu com a cumplicidade dos jornalistas encarregados de cobrir as suas actividades durante os 14 anos que foi Presidente de França. Enquanto o primeiro episódio é motivo de orgulho dos membros da classe (porventura dos mais frequentemente referidos), o segundo é daqueles que é, como se diz metaforicamente, sempre varrido discretamente para debaixo do tapete pelos mesmo membros da classe. E, se este poste fosse em formato de reportagem, assim seria uma boa forma de o terminar, sob as palavras fortes do contraste deste maniqueísmo do combate entre o bom jornalismo e o mau jornalismo.

Mas nem sempre deve ser assim porque a evolução da História a sério muitas vezes não se restringe aos ciclos semanais da informação jornalística. A História que conhecemos do Caso Watergate (cujos detalhes creio ser dispensável tornar a contar aqui) em 2010 é muitíssimo diferente daquela com que ela se encerrou nas páginas dos jornais há 36 anos atrás. O momento mais importante nessa evolução terá sido aquele dia de Maio de 2005 em que, depois de mais de 30 anos de segredo, a pessoa que era a fonte das principais notícias do Caso e que ficou conhecida pela alcunha pitoresca de Garganta Funda resolveu sair do anonimato. Chamava-se Mark Felt e fora um dos mais altos quadros do FBI na época dos acontecimentos. E a grande maioria da informação com que ele municiou os dois jornalistas heróis (Bob Woodward e Carl Bernstein) para que eles brilhassem com as suas investigações jornalísticas, era originária do material que lhe aterrava regularmente na sua secretária profissional. Ou seja, o FBI vigiava por rotina as actividades dos próprios presidentes...
A revelação de quem Felt era e do cargo que desempenhara terá sido caso para levantar retrospectivamente muitas questões pertinentes sobre a ética de, invocando o sacrossanto argumento da protecção da fonte, ter sido escondido da opinião pública durante mais de 30 anos um aspecto fundamental do Caso Watergate ou da justiça dos louros que haviam sido atribuídos às investigações de Woodward e Bernstein. Durante essas três décadas, os jornalistas e os responsáveis do Washington Post que conheciam a identidade de Felt permitiram, por omissão e porque certamente lhes convinha, a criação de uma espécie de fábula sobre a importância do jornalismo de investigação independente numa democracia, único instrumento possível para a denúncia dos segredos do aparelho do Estado, que os membros deste costumam esconder ciosamente, fora do alcance da opinião pública. Uma treta! Com a identificação de Felt percebe-se que o Caso Watergate não foi nada disso: um dos braços poderosos do tal aparelho do Estado instrumentalizou a imprensa para conspurcar um outro braço, teoricamente mais poderoso e a quem devia obediência, até que outros braços rivais levaram ao derrube do seu titular.

E também na altura ficou por investigar a própria pessoa de Mark Felt para se tentar perceber o que o motivou a fazer o que fez. Uma ironia acabrunhante é que o próprio Felt veio a ser acusado e condenado em 1980 por ter, enquanto dirigente do FBI, ordenado assaltos com colocações de escutas ilegais a sedes de organizações suspeitas, afinal precisamente aquilo que esteve na origem do Caso Watergate em 1972… Obviamente, não o terá escandalizado os métodos usados pela a famosa equipa de Canalizadores da Casa Branca. Veio a deduzir-se então (em 2005) que a causa, muito mais prosaica, fora o despeito. Felt era a terceira pessoa mais graduada do FBI quando o seu dirigente de sempre J. Edgar Hoover morreu em Maio de 1972. Mark Felt esperava vir a ser o sucessor mas, em vez disso, o Presidente preferiu fazer uma nomeação política para desanuviar o FBI de 37 anos consecutivos de controlo de J. Edgar Hoover. Felt levou a mal, resolveu vingar-se… e todos os jovens jornalistas recém formados ainda hoje ouvem falar do memorável trabalho de investigação de Woodward e Bernstein!
Mas não será apenas isso. Em 1972, Woodward e Bernstein tinham menos de 30 anos e podiam ser dois jovens jornalistas tão ambiciosos quanto inexperientes, mas Ben Bradlee, o seu chefe, já passara dos 50 e, sabendo a identidade da fonte que os alimentava, saberia o que estava em jogo e por onde quereria ir. É que, em termos mediáticos, tão suculenta teria sido a história que se veio a publicar, a de um Presidente sem escrúpulos e que possuía equipas privadas para os seus golpes sujos, como a história de uma agência federal (FBI) que afinal se regia por regras próprias e que até se dava ao desplante de espiar por rotina o próprio Presidente, a pessoa a quem deviam obediência. Em suma, durante mais de 30 anos, a cumplicidade concertada de Bradlee, Woodward e Bernstein permitiu não só que todo este lado sórdido do Caso Watergate permanecesse escondido da opinião pública, como que, ainda por cima, uma fábula mentirosa se construísse em cima do Caso. Quem gostar de perorar sobre deontologia da classe dos jornalistas tem aqui bastante com que se entreter…

Mas, coisa outra, mais interessante para o caso, são as consequências que as confissões de 2005 deveriam ter na leitura do que se passou. Um filme como Os Homens do Presidente, que foi estreado e estrelado em 1976 por uma constelação de que faziam parte Robert Redford (como Bob Woodward), Dustin Hoffman (Carl Bernstein) e Jason Robards (Ben Bradlee) passou a ter a validade como documento histórico de um daqueles filmes de entretenimento dos Estúdios da Disney que são baseados vagamente em acontecimentos reais – só que, ao contrário da Branca de Neve, do Dumbo ou do Bambi, não são desenhos animados... Continuar a invocar o filme e a manter a fábula do jornalismo de investigação em que ele assenta, cinco anos depois do impacto da confissão de Mark Felt e dois anos depois da sua morte, não é somente nostálgico, é estúpido, obtuso e mesmo sinal de ignorância

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