15 julho 2010

CONTESTAÇÃO NA CULTURA

As variadas contestações aos critérios de selecção dos destinatários dos financiamentos oriundos do Ministério da Cultura têm tanto de recorrentes quanto de entediantes. Fazem-me sempre lembrar uma famosa cena (acima) do filme Tootsie (1982) em que o actor Michael Dorsey (Dustin Hoffman) confronta o seu agente George Fields (Sydney Pollack). A vantagem da cena sobre a nossa realidade repetida é que ela tem ritmo, piada e, sobretudo, Michael Dorsey está disposto a arriscar o seu próprio dinheiro para produzir a peça...

- Michael, importas-te de esperar lá fora? Estou a falar com a Costa (Costa Oeste dos Estados Unidos, provavelmente a Califórnia).
- Esta também é uma costa, George. Nova Iorque também fica numa Costa (Leste).
- Jesus! Sy?... Sy?... Olha o que fizeste. Margaret?... Margaret?... Tenta apanhá-lo outra vez que a chamada caiu. O que é que aconteceu, Michael?
- Terry Bishop vai fazer o
Iceman Cometh, não é? Tu não me disseste que ias ver se me conseguias esse papel? Estou enganado? Não ias ver se eu conseguia uma audição? Não és o meu agente?...
- Stuart Pressman queria um nome, Michael.
- Ah, e então Terry Bishop é um nome…
- Não, não, Michael Dorsey é que é um nome. Quando se quer sarilhos, Michael Dorsey é um nome.
Michael faz tenção de sair.
- Espera aí, espera aí. Vamos lá a recomeçar a conversa outra vez do princípio. Terry Bishop entrava numa telenovela. Milhões de pessoas viam-no diariamente. É conhecido.
- E isso qualifica-o para arruinar Iceman Cometh quando eu sou não sei quantas vezes melhor que ele e até já fiz aquele papel em Minneapolis?
- Se o produtor queria um nome foi opção dele. Eu sei que isto te vai deixar triste, Michael, mas há uma data de gente que anda neste negócio para ganhar dinheiro.
- Disseste isso como se fosse para me atingir, George. Eu também estou nesta actividade para fazer dinheiro.
- Ah é?!
- Sim!
- O «Teatro de Harlem para Cegos»? «Strindberg no Parque»? O «Workshop Popular de Siracusa»?
- Ok, espera aí. Eu representei nove peças em oito meses em Siracusa. Acontece que consegui críticas elogiosas dos críticos nova-iorquinos, o que até nem era a minha preocupação principal.
- Claro que não. Deus te proíba de perderes essa tua atitude de fiasco cultural.
- É o que achas que eu sou, George? Um fiasco?
- Não me vou deixar arrastar para esse tipo de conversa. Não vou.
- Ok. Mandei-te uma peça de um amigo meu para tu leres que tinha um papel espectacular para mim. Leste-a?
- Por que raio é que me mandaste aquela peça do teu amigo em que interpretarias o papel principal? Sou o teu agente, não sou a tua mãe. Não é suposto arranjar peças para tu brilhares – é suposto arranjar-te ofertas de emprego. É isso que eu faço.
- Ofertas de emprego? Quem é que te contou essa, algum agente lírico? Aquilo é uma coisa de qualidade. E eu podia ser extraordinário a representar aquele papel.
- Michael, ninguém vai produzir aquela peça.
- Porquê?
- Porque é deprimente, para começar. Porque ninguém quer produzir uma peça a respeito de um casal que se voltou a instalar em Love Canal.
- Mas aquilo aconteceu mesmo.
- E QUEM É QUE SE RALA COM ISSO?! Ninguém está disposto a pagar 20 dólares para ver outros a viver na vizinhança de detritos químicos. Para isso podem ir logo ali a Nova Jérsia.
- Está bem, não quero discutir isso. Sou eu que vou arranjar os 8.000 dólares para produzir a peça e estou disponível para entrar em tudo o que me possas arranjar. Tudo! Até faço anúncios de televisão para cães. Faço dobragens para a rádio...
- Michael, não te consigo fazer isso.
- Porque não?
- Porque ninguém te quer contratar.
- Isso não é verdade. Sabes que eu me empenho até aos limites para que o meu trabalho saia bem. Sabes bem que sim.
- E entretanto consegues dar cabo da paciência de todos os outros que lá estão. Estive quatro semanas para te conseguir arranjar um papel numa peça, chegas lá e arranjas logo uma confusão por causa de Tolstoi, que não pode andar enquanto morre, ou andar e falar ao mesmo tempo ou cantar e…
- Isso foi há dois anos atrás e aquele gajo é um idiota.
- Reconhece uma evidência, Michael, tu arranjas discussões com toda a gente. Tens uma das piores reputações nesta cidade, Michael. Ninguém te quer contratar.
- Estás a dizer que ninguém em Nova Iorque quer trabalhar comigo?
- Não, não, estás a ser modesto… também ninguém de Hollywood quer trabalhar contigo. Nem num anúncio de televisão te consigo encaixar. Era para fazeres um tomate durante 30 segundos – demoraram mais meio-dia de filmagens suplementares porque tu não te querias sentar.
- Claro. Não tinha lógica.
- TU ERAS UM TOMATE! UM TOMATE NÃO TEM LÓGICA! UM TOMATE NEM TEM DE SE MEXER!
- FOI O QUE EU LHES DISSE! Se não se mexe, como é que ele se pode sentar George? Eu era um tomate: sexy, sumarento e apetitoso. Ninguém interpreta vegetais como eu! Uma vez fui fazer uma soirée de vegetais. Fiz o melhor tomate, o melhor pepino… até fiz uma salada de endívias que arrasou os críticos!
- Michael! Estou a tentar manter-me calmo. Tu… tu és um actor maravilhoso.
- Obrigado.
- Mas és demasiado conflituoso. Tenta tratar-te.
- Ok. Obrigado. Vou arranjar os 8.000 dólares e produzir a peça do Jeff.
-
Michael. Não vais conseguir arranjar 25 cêntimos! Ninguém te vai contratar.
- Ah é?...

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