10 julho 2009

A PROPÓSITO DOS ACONTECIMENTOS DE URUMQI

A China é o maior país do mundo. Com uma população estimada em 1.330.000.000 habitantes, em qualquer descrição que dela se queira fazer, há que recorrer necessariamente a simplificações para aquelas situações em que não se possa entrar em detalhes, como será o caso das notícias. Mas convém que essas simplificações não se tornem demasiado simples que distorçam ou esqueçam aspectos que depois se tornem cruciais para aquilo que é o objecto da notícia, como acontece com uma notícia do Público a respeito dos recentes acontecimentos em Urumqi, no Xinjiang, que caracteriza os uigures como uma etnia muçulmana de ascendência turca. Ora as etnias resultam de classificações culturais de que a religião é apenas um dos aspectos(*)
Acontece que a China presta até uma desmesurada atenção às suas minorias étnicas, muito superior ao seu peso proporcional (ligeiramente menor que 10%) em relação ao total da população. Há 55 minorias devidamente reconhecidas, e uma das interpretações do significado da bandeira chinesa (acima) estabelece que a estrela maior se refere aos chineses Han, que constituem a maioria da população enquanto que as quatro estrelas menores simbolizam as quatro minorias principais: manchu, uigur, mongol e tibetana. Doutra forma, ao observarmos uma nota chinesa de 1 yuan, poderemos reparar que no verso e no canto superior direito (clicar em cima da gravura abaixo), por debaixo do alfabeto latino, a designação da nota aparece escrita nos outros quatro alfabetos.
Portanto, pelo menos do ponto de vista formal, as preocupações com as minorias étnicas por parte de Pequim são inquestionáveis e crê-se que ultrapassarão mesmo mais do que o formalismo: a decisão do Presidente Hu Jintao de cancelar o seu programa, incluindo a presença na Cimeira do G8 parece prova disso. Mantendo as escalas, e adaptando, na medida do possível, o gesto à realidade portuguesa, é improvável que Cavaco Silva ou José Sócrates cancelassem um programa de visitas oficiais por causa de conflitos urbanos como aqueles que ocorreram o ano passado em Loures… E, contudo, extintos os conflitos que chamaram a atenção dos transumantes para Urumqi, que é que mais se poderá escrever de substancial quanto às suas causas profundas?
Uma das questões importantes que se presta a ser mal compreendida por quem segue as notícias é a da identidade de uma das facções em luta, a dos chineses Han, a etnia maioritária da China. Embora os Han possuam uma consciência identitária comum, estão muito longe de serem culturalmente homogéneos – o que não surpreende sabendo que são mais de 1.200 milhões! Embora exista uma forma de expressão oral assumida como referência (o mandarim) que todos mais ou menos dominam, as formas coloquiais de falar em Pequim são diferentes das de Xangai ou de Hong Kong, mesmo incompreensíveis(**). Ora esse é um conceito bizarro na Europa: será preciso recuar até ao Império Romano para que aqui aceitemos um compatriota que fale um idioma incompreensível…
Assim, o conceito chinês de minoria étnica (como os uigures) aplica-se aos grupos que são mesmo diferentes, embora a maioria dessas minorias tenham vindo a ser sujeitas à aculturação ao longo dos últimos séculos. Os uigures foram das últimas minorias a fazer parte da China. A geografia (ver o mapa inicial) explica porquê. De forma continuada a China exerceu a sua soberania sobre o Xinjiang desde meados do Século XVIII. Nessa altura já a importância da Rota da Seda, que ligava a China à Europa e que o atravessava desaparecera, mas o valor atribuído à actividade comercial, conjuntamente com a da criação de gado, manteve-se importante entre os uigures. Desde então, passou a existir uma coesa diáspora uigur em quase todas as maiores cidades da China.
Como os judeus na Europa ou os arménios e chechenos na Rússia, essa recusa em se integrarem suscita a animosidade do grosso da população. Contudo, fruto do recente desenvolvimento económico da China, o padrão da emigração uigur está a mudar. E as províncias costeiras, sempre sequiosas de mão-de-obra, começaram a contratar cada vez mais longe, mesmo no Xinjiang. Aparentemente, terá havido nos finais de Junho, uma grande confrontação numa fábrica de brinquedos na província de Cantão entre trabalhadores migrantes uigures e locais. O episódio terá servido de pretexto para que tivesse havido retaliações em Urumqi, onde os uigures estão em menor desvantagem numérica. Os chineses, no seu estilo inconfundível, estão a tentar serenar os ânimos.
Como já haviam feito os russos a respeito da Chechénia, uma das manobras como a China reagiu aos acontecimentos, parece ser a de querer dar importância ao aspecto religioso da questão – os uigures são predominantemente muçulmanos. Como em todos os conflitos, haverá provavelmente os extremistas próximos da Al-Qaeda prontos a usar a carta do Islão, mas a questão nuclear em disputa será sobretudo uma questão de nacionalidades. Na sua essência, e por muito que isso pareça paradoxal num estado que se reclama da ideologia marxista-leninista, ideologia que, recorde-se, já havia superado todos esses problemas, o que aconteceu em Urumqi foram as manifestações de reacção dos uigures ao imperialismo dos chineses Han, num verdadeiro quadro neo-colonial…

(*) – Por exemplo, na Irlanda do Norte, o conflito que há anos ali opõe os Protestantes aos Católicos, não pode ser classificado propriamente de conflito inter-étnico…
(**) – Já aqui tinha tido oportunidade de colocar um poste sobre uma disputa entre Xangai e Pequim a respeito do idioma de dobragem dos desenhos animados de Tom e Jerry que passavam na televisão de Xangai.

2 comentários:

  1. Há uma outra questão que se coloca é que se os chineses forem atrás do "seu" Bin Laden não estou a vê-los com aquelas preocupações dos danos colaterais.
    Aliás com o Paquistão e com Urumqui se os muçulmanos quiserem guerra poderão sofrer um massacre que alguma potencia ocidental (EUA) faria.

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