20 junho 2007

GUERRAS ESQUECIDAS (5): A GUERRA IRÃO-IRAQUE (1980-88)

Uma das coisas aborrecidas da Primeira Guerra Mundial, para quem gosta de seguir as guerras por mapas, é que os mapas das posições daquela guerra são aborrecidamente pouco variados apesar dos quatro anos (1914-18) de duração da guerra. Pois a Guerra entre o Irão e o Iraque durou sensivelmente o dobro desse tempo (1980-88) e a guerra de posições que os dois países travaram sintetiza-se em mapas ainda piores (abaixo)! Semelhantes como guerras de posições, para piorar ainda mais isso, para os apreciadores de fotografias de guerra, à riqueza informativa e artística das do primeiro conflito global, as desta guerra do médio oriente são normalmente uma decepção de poses e eventos infantilmente mal encenados…
Um dos aspectos mais esquecidos é o da proximidade em que este conflito teve lugar em relação às fronteiras da União Soviética e da importância dele para esta última: o extremo norte da fronteira entre Irão e Iraque está a uns meros 200 km, em linha recta, do Azerbeijão, uma das repúblicas da antiga URSS. O que não invalida que esta tenha sido uma das guerras mais difíceis de interpretar pela política de blocos definida pela Guerra-Fria: para a comunicação social ocidental, nomeadamente a norte-americana, habituada a explicar os contendores à audiência numa lógica de maus e bons, à faroeste, aqui viu-se em palpos de aranha porque esta era uma história onde havia maus… e péssimos, ambos cheios de petróleo.

No quadro simplificado dos bons e maus da Guerra-Fria, os maus haviam sido, desde o golpe militar de 1958, os iraquianos, que sendo contra Israel, eram abastecidos em material militar pela União Soviética. E isso fazia todo o sentido porque, desde quase sempre, entre os bons se contavam os seus vizinhos iranianos, que eram, depois de 1953 e sob o regime do Xá, os aliados preferenciais dos Estados Unidos para a região. Até 1979, quando o Xá foi derrubado, o Irão mudou de regime e se tornou ferozmente anti-americano (o que não quer dizer necessariamente pró-soviético…), tendo feito os Estados Unidos passar um muito mau bocado em termos de projecção da sua imagem internacional com o sequestro do pessoal da sua embaixada em Teerão. Por causa disso, compreensivelmente, os iranianos passaram a ser os péssimos.
Com um regime teocrático, dirigido por clérigos, o Irão viu-se numa posição fragilizada em termos de alianças internacionais (não as tinha…) a complementar com uma situação interna também muito fluida quanto às sedes da autoridade, típica de uma situação pós-revolucionária. Era uma excelente oportunidade que Saddam Hussein, o presidente iraquiano, devia aproveitar para negociar em situação de vantagem com os seus vizinhos iranianos. A ocasião estava certa, o calendário era oportuno, o problema era o que ele queria dos iranianos e os limites a que estava disposto a ir para o alcançar… E os incentivos que estava a receber para o fazer… dos tradicionais aliados soviéticos e dos despeitados norte-americanos.

A ofensiva militar iraquiana foi desencadeada em Setembro de 1980 e, aproveitando-se da mais completa desorganização das forças armadas iranianas tanto em falta de enquadramento (a maioria dos oficiais haviam sido afastados devido à revolução islâmica), como em falta de material (o material iraniano era todo de origem norte-americana e estes haviam feito um boicote ao envio de munições e de peças de substituição), o exército iraquiano havia conseguido atingir os seus objectivos um mês depois. Só que as proclamações de cessar-fogo iraquianas foram sendo sucessivamente rejeitadas pelos iranianos. E o Iraque, ainda em vantagem, foi-se apossando de outros objectivos para reforçar a sua posição negocial.
A verdade é que foi o alto clero xiita iraniano que se apoderou firmemente do poder em Teerão (o presidente Bani-Sadr foi afastado em Junho de 1981) e as forças armadas iranianas iniciaram um pouco conhecido (e pouco elogiado, mas muito eficaz) processo de reorganização, lançado em bases muito mais ideológicas, com a formação de uma guarda revolucionária (cujos membros são conhecidos por pasdarans) em paralelo aos ramos tradicionais, a fazer lembrar o que foram as Waffen SS alemãs da Segunda Guerra Mundial, mas numa escala muito maior: no final da guerra (1988), estima-se que os pasdarans totalizavam 300 mil dos 650 mil efectivos que se contavam nas forças iranianas.

Desde 1982, e depois do Irão ter encontrado as fontes de abastecimento alternativas para poder alimentar a sua máquina de guerra (o financiamento vinha-lhe das exportações de petróleo), foi ao Irão que pertenceu regularmente a iniciativa da guerra, recusando as sucessivas propostas de tréguas entretanto surgidas do lado iraquiano. Mas tratava-se de uma guerra de posições e de pequenas progressões, ganhas a custo, por atrito, onde as operações se repetiam praticamente nos mesmos locais, levando a que elas fossem designadas com o mesmo nome seguido de um cardinal, Karbala-1,2,3, …, 8 ou Nasr-1,2,3,4 – mais uma vez, copiando o que acontecera na Primeira Guerra Mundial, onde houve 11 batalhas do Isonzo, ou Ypres, onde houve outras 3…

Global e objectivamente, a superioridade militar passara para os iranianos, e o seu objectivo visível passou a ser o de aproveitar o pretexto da invasão iraquiana para derrubar o regime de Saddam Hussein, rejeitando consecutivamente as propostas de paz baseadas no status quo anterior à guerra que lhes eram propostas pelos iraquianos. Foi a época em que se assistiu a uma improvável coligação americano-soviética de apoio militar ao regime iraquiano de oposição à constituição de um outro regime xiita no Iraque, que pusesse em causa os equilíbrios estabelecidos na região. É dessa época a fotografia (abaixo) em que aparece Donald Rumsfeld cumprimentando Saddam Hussein (1983), tornada famosa 20 anos depois.
A exploração recíproca das minorias étnicas de cada um dos oponentes para a abertura de frentes de combate na retaguarda da frente inimiga acabou por se revelar um fiasco enorme porque a crueldade dos dois regimes levava-os a ser implacáveis com os seus opositores internos. Posteriormente, veio a ser dada muita publicidade às imagens das vítimas das aldeias curdas sujeitas a ataques com armas químicas iraquianas, mas também há relatos e outras imagens, menos publicitadas, do tratamento que as autoridades iranianas deram aos opositores do regime islâmico - fossem os comunistas do partido Tudeh, fossem os curdos do Curdistão iraniano que, tal como os seus irmãos do Iraque, pretendem constituir um grande estado curdo.

Já sem qualquer esperança de obter uma vitória nas regiões terrestres por onde começara originalmente a invasão, as opções abertas ao Iraque eram as de diversificar as frentes de combate, passando a atacar a actividade de exportação petrolífera do seu inimigo (nomeadamente os meios de transporte – navios petroleiros – que usavam o Golfo Pérsico), o que provocou a resposta simétrica dos iranianos. Uma outra opção iraquiana foi o bombardeio das principais cidades inimigas, quer pela aviação convencional, quer pelo lançamento de mísseis de alcance médio, como o soviético SS-1 Scud e seus derivados, carregados de explosivos convencionais. Desnecessário será dizer que esta iniciativa recebeu também a respectiva retaliação do lado iraniano…
Mas a perturbação do transporte petrolífero de três dos grandes países exportadores mundiais foi um assunto capaz de afectar a cotação do barril de petróleo nos mercados internacionais e, assim, um pretexto passível de desencadear a atenção dos Estados Unidos e das restantes potências do Conselho de Segurança da ONU. A pedido do Kuwait (outro grande exportador da região, vitima colateral dos ataques), os Estados Unidos deslocaram para o Golfo Pérsico um importante dispositivo naval, na tarefa formalmente neutral de dissuadir os ataques à navegação civil e se encarregar da segurança dos petroleiros, mas onde o resultado final acabava por resultar num benefício objectivo para os iraquianos.

A acumulação de pequenos incidentes tornou a neutralidade norte-americana cada vez menos convincente, até que em Maio de 1987, um Mirage F-1 iraquiano atacou – presume-se que por lapso – com mísseis anti-navio Exocet (ambos os equipamentos são de construção francesa) uma Fragata norte-americana (USS Stark) que patrulhava a região. No incidente vieram a morrer 37 marinheiros norte-americanos e outros 21 ficaram feridos. Contudo, ao contrário de todos os episódios envolvendo os iranianos – com quem os norte-americanos chegaram mesmo a vias de facto em Abril de 1988 (Operação Praying Mantis) – este veio a ser tratado muito mais discretamente…

Mas a presença naval norte-americana na região, que já só era aparentemente neutral, veio a cair completamente em descrédito quando, em Julho de 1988, um dos seus Cruzadores (USS Vincennes) abateu com mísseis anti-aéreos – quase certamente por engano – uma aeronave civil iraniana (um Airbus A-300 das suas linhas aéreas) com 290 pessoas a bordo sobre o Estreito de Ormuz… Ainda hoje é especulação que parcela (se alguma) deste acontecimento (que enfraqueceu inequivocamente a reputação dos Estados Unidos na região*) terá contribuído para que as movimentações diplomáticas ocultas possam ter chegado rapidamente a bom fim. A verdade é que duas semanas depois dele, Khomeini declarava aceitar o cessar-fogo e um mês depois estava a guerra terminada…

* Em Setembro de 1983, um aparelho militar soviético havia abatido um Boieng-747 civil da Korean Air em pleno ar, matando as 269 pessoas a bordo. Os Estados Unidos haviam montado uma enorme operação mediática de censura aos soviéticos que deixara a imagem destes últimos em muito maus lençóis. Em Julho de 1988, voltou-se o feitiço contra o feiticeiro.

2 comentários:

  1. Também não sei se classificaria esta guerra como "esquecida", pelo menos ao nível das outras que aparecem nos posts anteriores. Nos anos 80, este conflito era um dos mais mediáticos e conhecidos, e parecia interminável.
    Já agora, as técnicas dos Pasdarans eram extremamente eficazes, mas muitíssimo sangrentas: houve inúmeros casos em que punham bombas no corpo e se atiravam contra os blindados iraquianos, fazendo-os explodir. Komeiny construíu mesmo uma fonte de água vermelha em Teerão, simbolizando "o sangue dos mártires do Islão".

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  2. Se recuarmos na História, aos batalhões disciplinares do Exército Vermelho (de onde só se saía morto ou herói), à Guarda Imperial de Napoleão (que só recuou em Waterloo) e, para fechar o ciclo no mesmo local, aos imortais da Pérsia Aqueménida (que assim se chamavam por serem imediatamente substituídos em combate por um camarada), sempre houve unidades de infantaria de elite míticas, capazes de feitos inigualáveis, como aconteceu com os “pasdarans”.

    Só que a investigação histórica mais aprofundada dos exemplos que mencionei reduziu esses mitos a alguns epifenómenos, muito propagandeados, mas irrelevantes para o desfecho das batalhas e dos conflitos. E há mais do que um episódio em que a reputação que os precedia vencia a batalha que não se chegava a travar... Talvez seja o caso do “pasdarans” ou talvez não…

    Tem razão, João Pedro, ao considerar que esta guerra não é uma guerra “esquecida” como as outras. Mas é uma guerra desconhecida, o que é diferente do conceito de que fala, que é o de uma guerra “noticiada”. É que nem iranianos nem iraquianos alguma vez facilitaram o acesso da comunicação social independente aos combatentes, nem há muitos relatos independentes destes sobre aquilo por que passaram… É isso que justifica as dúvidas sobre a veracidade da lenda dos “pasdarans”…

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