31 maio 2007

SIGLAS QUE SOAM BEM, MAS QUE PODEM NÃO QUERER DIZER NADA

É muito famoso e muito filmado o episódio do ataque japonês a Pearl Harbour em 7 de Dezembro de 1941. O que é menos sabido é que esse ataque foi apenas uma das facetas de um plano geral coordenado e que houve um conjunto de outros ataques simultâneos ou quase, desencadeado pelas forças armadas japonesas contra as várias possessões que os países ocidentais em guerra contra o Eixo tinham no Extremo Oriente.

No dia seguinte àquele em que as forças aeronavais nipónicas afundaram os couraçados norte-americanos, as tropas japonesas atacaram a colónia britânica de Hong-Kong, na China, e desembarcaram na Malásia britânica. Dois dias depois, era a vez dos desembarques nas ilhas de Lução, a mais setentrional das Filipinas, e de Guam, no meio do Oceano Pacífico, que estavam ambas sob tutela norte-americana.

Uma semana depois calhava a vez à ilha de Bornéu, e a ameaça da expansão japonesa estendeu-se rapidamente às Índias Orientais Holandesas e à Austrália. Para a defrontar, os vários países ameaçados criaram um comando conjunto (veja-se a imagem acima com a sua área de influência), com uma designação muito imaginativa mas, como os acontecimentos posteriores vieram claramente demonstrar, de uma eficácia muito reduzida.

O Comando designava-se ABDA (American – British – Dutch – Australian), era comandado por um general britânico (Wavell) e o comando de cada ramo estava salomonicamente dividido por cada nacionalidade: Exército (Poorten, holandês), Marinha (Hart, norte-americano) e Força Aérea (Peirse, britânico). E tinha um defeito notável: não funcionava – MacArthur, por exemplo, que estava nas Filipinas, não se encaixava originalmente naquela estrutura…

O ABDA foi assim um daqueles soundbites inócuos, criado para efeitos de propaganda de guerra que existiu antes do termo ter sido criado (o comando durou pouco mais de mês e meio, antes de se desagregar perante as sucessivas derrotas frente aos japoneses…). Mas lembro-me dele quando ouço daqueles acrónimos que associam países muito diferentes, com um remoto denominador comum, mas ordenados por forma a soar bem ao ouvido: BRIC.
BRIC (tem a mesma sonoridade que a palavra tijolo em inglês: brick) é um acrónimo que resulta da junção encadeada das iniciais de Brasil – Rússia – Índia – China. Empregá-lo dá um certo ar de entendimento mais aprofundado dos problemas de política internacional, como decerto não terá escapado aos assessores de José Sócrates. São todas economias emergentes, mas desbastada essa trivialidade, emergem de forma diferente e com objectivos estratégicos distintos.

A começar pela Rússia, que não emerge propriamente, antes reemerge, embora agora numa versão mais reduzida da União Soviética. É um país que está a viver momentos de prosperidade, é um grande país exportador como os seus colegas de acrónimo China e Brasil, mas há que ter presente que esse resultado (como acontecia com a antiga União Soviética, de resto) é obtido à custa da venda das suas matérias-primas, não da eficácia da sua produção industrial, que não parece ter melhorado significativamente.

Quem também não tem um sector industrial com o dinamismo suficiente para conseguir equilibrar a sua balança comercial com o exterior é a Índia. Mas também não tem matérias-primas que supram a diferença. Contudo, esse défice quase desaparece totalmente quando se contabilizam os serviços em que a Índia se tem vindo a especializar. Só que os grandes clientes da Índia não estão nos seus colegas do BRIC, mas sim nas economias dos países desenvolvidos…

Finalmente, a China e o Brasil são os países cujas estruturas económicas mais se assemelham. Ambos são grandes exportadores de produção industrial, mas o Brasil adiciona a isso potencialidades de exportador de matérias-primas agrícolas e minerais. De dimensões continentais, sofrem ambos de problemas semelhantes e graves de assimetrias quanto aos ritmos de desenvolvimento interno das suas regiões. Mas as semelhanças também os podem transformar em rivais na busca de clientes externos para o que produzem…

Em suma, e como se percebe, é uma aposta que não demonstra grande presciência a de antecipar o crescimento económico e o aumento de importância destes 4 países, embora eles o estejam a fazer cada um à sua maneira distinta e, se calhar, nalguns casos em concorrência directa entre si. Convém é não esquecer também as realidades das potências económicas já existentes que querem traduzir em verdadeira influência estratégica esse seu poder. Fala-se imenso das exportações da China, mas esquece-se que o país mais exportador do Mundo* é a Alemanha…

* Aquele que regista o maior superavite em valor na sua balança comercial (dados de Março de 2007)

30 maio 2007

OS ANJINHOS

Eins, zwei, drei, vier… Então não se percebe logo que começar um genérico com esta introdução é uma referência evidente à música com que a Alemanha concorreu ao Festival da Canção de mil novecentos e sessenta e tal e que serviu de inspiração para a de abertura do nosso programa de televisão?...

Não, não se percebe e é pena que seja com argumentos destes e outros parecidos que Ricardo Araújo Pereira, mesmo que recorra à sua ironia inteligente e desarmante, pretenda desmontar as acusações de plágio que o DN lhes lançou na semana passada, num artigo que o jornal deu um destaque que na altura considerei exagerado.

Só que acontece que o efeito colateral de tanta transparência no processo de apropriação da música que se descobre afinal ser inglesa, datar do século XVI e ser do domínio público, tal qual a descreve o Ricardo, transforma o seu colega Zé Diogo Quintela, entrevistado por altura da publicação da primeira notícia, num mentecapto que aparentemente não soube esclarecer quase nenhum daqueles pormenores...

Reafirmando um poste anterior, sempre dei pouco crédito a plágios que são mais importantes pela figura do plagiador do que pela gravidade do plágio mas, tal qual Pinheiro de Azevedo não gostava de ser sequestrado (é uma coisa que me chateia, pá!...), não gosto de ser tomado por parvo e de ouvir explicações que tornam o assunto óbvio mas que já podiam ter sido prestadas logo desde o princípio… Ou será que ainda não haviam sido descobertas, ao princípio?...

O MEU "TESTO" "INTREPETATIVO”

Quando vejo opiniões de evidente cunho retrógrado a propósito da língua portuguesa dá-me ganas de mandar os autores de tais textos para as evidências do passado, quando o antepassado da sua diamantina língua portuguesa não passava de um crioulo reles de latim… Depois disso, muitos milhões, ao longo de sucessivas gerações, usaram diversas versões dela, enquanto umas poucas centenas se encarregavam de criar e modificar uma versão central escrita que constituísse a referência das diferentes formas de falar.

É que os rigorosos mais intolerantes, que se insurgem contra a invasão dos galicismos ou anglicismos (apresentando aquelas sugestões petulantes de substituir a expressão abat-jour, correntemente usada, pelo puríssimo quebra luz, que tem o notável inconveniente de quase ninguém empregar…) deviam ser mandados em máquinas do tempo para o passado, para travar as suas batalhas no período compreendido entre o Século VIII e o XIII, quando o nosso idioma ficou cravejado de arabismos estrangeiros…

Mas esta enorme introdução, que serve para me distanciar de uma certa forma que considero caduca de tratar o problema da evolução da língua, destina-se sobretudo a denunciar uma outra postura, configurada na colossal imbecilidade anunciada pela notícia de jornal que nos deu conta que, numa das partes das provas nacionais de língua portuguesa para os 4º e 6º anos recentemente realizadas, os professores foram instruídos que os erros de construção gráfica, grafia ou de uso de convenções gráficas (ou seja, as calinadas) não fossem considerados

Haverá métodos legítimos de forçar a obtenção de melhores resultados em exames nacionais. Não me pronuncio sobre a legitimidade deste, mas faço-o sobre a sua consistência: não tem. Ou se sabe escrever correctamente, ou não se sabe – é senso comum e não depende do grupo de respostas da prova. Utilizando a famosa buzzword da actividade pedagógica, há competências que não são compartimentáveis. Por exemplo, usando a mesma palavra mas no seu sentido tradicional, terei grandes dificuldades em classificar os autores desta decisão como competentes

Mas que tudo isto não faça esquecer muitas outras imbecilidades a respeito de exames que se escreveram a este respeito no passado, como, por exemplo, isto

Nota: Um agradecimento especial ao Pedro Freitas a quem fui buscar esta, para mim muito significativa, fotografia de uma nota de correcção a um teste de português feita pelo Menau

29 maio 2007

AINDA O DÉFICE TARIFÁRIO

Simulador de potência ajuda a poupar na factura eléctrica
29.05.2007, Lurdes Ferreira

Os consumidores domésticos portugueses continuam a pagar mais pela electricidade do que os seus congéneres espanhóis, embora a diferença esteja a reduzir-se: em 2005, era de 21,1 por cento, em 2006, de 18 por cento, segundo dados da ERSE. (…)
Este é o início de uma notícia pequena e discreta da página 39 do Público de hoje, promovendo um simulador da potência a contratar, disponível no site da ERSE, a entidade reguladora do sector. Mas é àquela pequena introdução que pretendo dar destaque, relembrando, como o título da famosa peça de Luigi Pirandello Seis Personagens à Procura de Autor, que ainda ando à procura de um autor que me dê uma explicação capaz para o tão propalado défice tarifário de que se falava tanto aqui há uns sete meses e que justificava que a EDP aumentasse aceleradamente as suas tarifas num futuro próximo.

NA ÉPOCA DO PEDITÓRIO

Ou eu ando a embirrar com os assessores da campanha de António Costa ou são os assessores que andam apostados em fazer todas as asneiras necessárias para que eu embirre com eles. Agora, depois de uma crise de hipermandatarismo lembraram-se de publicitar os membros que formam a comissão de honra da candidatura, cujo elenco (11 páginas inteirinhas em formato pdf…) pode ser lido aqui. Há quem se dedique a fazer análises detalhadas sobre os nomes lá presentes e os que estão ausentes.
Eu prefiro olhar para a floresta e comentar a evidente falta do sentido das proporções. Afinal trata-se apenas de umas eleições para uma câmara municipal, não de um ensaio de umas presidenciais e é um disparate incluir naquela comissão uma boa percentagem de nomes que até se sabe não residirem em Lisboa (Freitas do Amaral, por exemplo). É um elenco pletórico, a fazer lembrar as épocas do peditório para a luta contra o cancro, em que só não andava de estampilha ao peito os que tinham estado ausentes da rua…

28 maio 2007

E ASSIM DEFINITIVAMENTE TAMBÉM NÃO...

Só passaram quatro meses e ainda todos se recordam dos famosos vídeos do professor Marcelo a propósito do referendo sobre a despenalização do aborto, da paródia que os Gato Fedorento lhe fizeram quase de seguida, que se tornou ainda mais famosa do que o original, apesar do descarado (e falso) desmentido em contrário de Marcelo… Foi completamente transparente como toda aquela história dos vídeos no Youtube correra bastante mal a Marcelo, que deles saíra gozado, e que era apenas por orgulho que se furtava a admiti-lo ali na televisão, à frente de Maria Flor Pedroso…
Completando e corroborando este quadro, passado muito pouco tempo e da forma o mais discreta possível, venho a descobrir acidentalmente que todos os vídeos Assim Não em que Marcelo apareceu a defender o voto NÃO no referendo de Fevereiro já foram retirados do Youtube… Sempre se pode invocar o argumento que o assunto de que tratavam foi ultrapassado, mas o zelo demonstrado (nem um trecho de vídeo sobreviveu!), adicionado ao facto de o Youtube não ser um espaço onde se disputa ferozmente a afixação como um out door de rua, acrescido da discrição com que a operação decorreu, é forte indício de reconhecimento de derrota e de uma grande falta de fair play, atributos que caem mal a quem, para mais, se propagandeia adepto e praticante de desportos civilizados como o ténis…

A CONTRIBUIÇÃO DA COTAÇÃO DO BARRIL DE PETRÓLEO NA NOVA ORDEM MUNDIAL

Mesmo depois da conjugação de incidentes que fizeram com que o petróleo tivesse atingido no Verão de 2006 a fasquia dos 80 dólares/barril, é prudente concluir que está difundida uma percepção generalizada que no futuro próximo haverá uma pressão constante na procura do produto, causada sobretudo pelas necessidades crescentes das economias chinesa e indiana, o que torna improvável o regresso das cotações do barril a valores oscilando à volta dos 50 dólares ou mesmo abaixo disso, como se anunciava expectável há poucos anos atrás.
A evolução da cotação do barril de petróleo no último ano, visível no quadro acima, mostra que, contornando momentos circunstanciais de alta (Julho de 2006) ou baixa (Janeiro de 2007) nos preços, ela se tem situado sensivelmente no meio do intervalo entre os valores de 60 e 70 dólares. E isso equivale a dizer que os países exportadores de petróleo estão a viver momentos de alguma prosperidade relativa, assim como estão com perspectivas risonhas para o seu futuro económico próximo. E isso tem-se reflectido de alguma forma no comportamento em política internacional de alguns deles.
Observando a lista ordenada desses países, os casos mais exuberantes são os do Irão (4º lugar) e da Venezuela (8º). Outros, pelo contrário, são tradicionalmente discretos, como a Arábia Saudita (1º), os Emiratos Árabes Unidos (6º) ou o Koweit (7º). Há ainda outros que são, ou um enigma, como a Nigéria (5º), ou uma verdadeira surpresa, como a Noruega (3º)! Mas nenhum destes países dispõe dos recursos complementares para poder desenvolver uma capacidade de influência estratégica global baseada no contrôle do acesso aos recursos energéticos como parece ser cada vez mais o caso da Rússia (2º lugar).
É hoje um episódio esquecido da Guerra-Fria a forma como os Estados Unidos tentaram, sob a administração de Jimmy Carter (1977-81), condicionar também o comportamento do seu grande adversário no seguimento da invasão do Afeganistão (1979), estabelecendo um embargo à venda de cereais à União Soviética (de Janeiro 1980 a Abril 1981). O gesto acabou por não ter consequências para os soviéticos porque os concorrentes naquele mercado dos norte-americanos, apesar de seus aliados (o Canadá, a Europa e a Austrália), se precipitaram para o vazio comercial deixado por eles.
De todo o episódio extraiu-se a lição das limitações da eficácia do uso dos embargos ao comércio de matérias-primas, mesmo quando sejam decretados por superpotências… Por um lado há sempre o efeito da concorrência e, por outro, não se podem subestimar as interdependências que se estabelecem entre produtores e consumidores: os agricultores norte-americanos, a quem foi preciso pagar para não produzir, contaram-se entre os que mais maciçamente votaram em Reagan nas eleições de 1980… Terá Putin clientes alternativos para os mais de 6 milhões de barris de petróleo que agora exporta diariamente?

27 maio 2007

TV NOSTALGIA – 31 (Com considerações acerca de queijos e de integração europeia, quando excessiva)

Nos anos imediatamente a seguir ao fim da Segunda Guerra Mundial, a pressão dos países europeus para exportarem todos os produtos alimentares que pudessem para assim conseguirem diminuir o seu deficit alimentar com o exterior (além de aumentar as reservas em divisas...) era tão grande que se chegaram a situações paradoxais provocadas pela intensidade do fluxo de trocas. Uma espécie de integração europeia em excesso
A um diplomata norte-americano em visita à Europa, pediram-lhe imensa desculpa em Paris por não poder honrar a tradicional tradição dos queijos franceses mas, em contrapartida, podiam-lhe oferecer o genuíno Stilton* britânico no fim da refeição, enquanto que no jantar que lhe ofereceram uns dias depois em Londres, não havia queijos tradicionais britânicos, mas o anfitrião pensava superar a sua falta com Roquefort* francês original…
Ora foi precisamente uma sensação de estar no lado errado do Canal da Mancha, do género da que deve ter sentido o diplomata quando, imaginem a minha surpresa, ao pesquisar o You Tube à procura de imagens originais da saudosa série The Adventures of Robin Hood que passava na RTP nos anos 60 e 70, para dela fazer uma referência num poste nostálgico, descubro que a que existia estava dobrada em… francês. Assim, o refrão inconfundível
Robin Hood, Robin Hood, riding through the glen
Robin Hood, Robin Hood, with his band of men
Feared by the bad, loved by the good;
Robin Hood, Robin Hood, Robin Hood!surgiam no vídeo do genérico ligeiramente distorcido por alusões a um tal de Robin du Bois… Sei que pode ser uma contradição com aquilo que já aqui escrevi, a respeito de Maigrets feitos do lado errado do Canal da Mancha, e sobre o respeito que me merece o que deve ser genuinamente francês e o que deve ser genuinamente britânico. Mesmo assim não resisti a fazer a ligação… Ao menos, o som das trombetas e o da seta a zunir eram rigorosamente os mesmos...

Adenda: Uma alma de uma generosidade verdadeiramente medieval, que dá pelo nome de HoughsVideos inseriu os dois vídeos originais (o da apresentação e do encerramento) no You Tube. Aproveitem-nos enquanto os zelosos dos direitos de autor não os descobrem, na sua infinda batalha contra as nossas pequenas nostalgias…

* Stilton e Roquefort são dois queijos tradicionais com aspectos muito semelhantes e com processos de produção que se assemelham também bastante, embora o britânico seja feito a partir de leite de vaca e o francês de leite de ovelha.

26 maio 2007

A VITÓRIA DESPERDIÇADA POR ISRAEL HÁ 40 ANOS

Ao ler o título principal da capa da edição desta semana da revista The Economist (mais abaixo), que, de alguma forma, transpus como título para este poste, lembrei-me do livro After Victory da autoria de G. John Ikenberry (Priceton University Press – 2001). Trata-se de um livro sobre relações internacionais muito interessante, não apenas pela tese do autor, mas sobretudo pela questão central que levanta: o que é que os estados que vencem guerras fazem com o poder que adquiriram através da vitória e como é que o usam para a construção de uma nova ordem internacional que lhes seja mais conveniente?
Nada mais evidente para concluir como, da pergunta e na opinião do autor, a vitória militar é apenas um meio e que o verdadeiro fim da potência vencedora deve ser o de construir um modus vivendi internacional que lhe seja mais favorável do que a situação precedente à da guerra. E, usando os exemplos das grandes transformações que se registaram no fim das Guerras Napoleónicas (1815), da Primeira (1919) e Segunda Guerras Mundiais (1945), ele pretende demonstrar o sucesso das soluções moderadas em detrimento das radicais (a de Versailles de 1919). Estava-se ainda em 2001 e o livro também podia ser lido como uma sugestão do autor quanto ao modelo que os Estados Unidos pretenderiam impor ao Mundo, como vencedores da Guerra-Fria...
Embora a tese de Ikenberry (na imagem acima) tenha os seus aspectos discutíveis (em mais do que um aspecto, as suas opiniões parecem estar no extremo ideológico diametralmente oposto às dos neo-conservadores), as ideias nela contidas podem ser directamente transpostas, à escala regional, para o caso de Israel e dos seus vizinhos árabes. E, como que corroborando essa tese e aproveitando a efeméride dos 40 anos da Guerra dos Seis Dias de 1967, a The Economist (abaixo) publica vários textos a respeito da história do conflito israelo-árabe, onde os autores se mostram críticos severos quanto às capacidades israelitas para terem aproveitado os períodos After Victory.
Este pode ser um daqueles casos em que parece ser mais importante a figura de quem opina (bem como o seu tradicional posicionamento ideológico liberal) do que o próprio conteúdo das opiniões transmitidas pelos artigos. Mas, por muito severas que sejam as críticas contidas na revista ao percurso negocial do Estado de Israel, é difícil não aceitar a boa fundamentação da maioria delas. Mesmo as afinidades ideológicas e civilizacionais não podem esconder a objectividade de quão pouco a fragilidade da situação estratégica global de Israel evoluiu entre as ameaças que precederam os acontecimentos de Junho de 1967 e a situação que se vive em Maio de 2007.

DA NEVE PARA O GELO

A notícia que me chamou a atenção para o assunto está numa pequena inserção perdida na página 70 da revista The Economist, e é mais um daqueles aspectos ridículos deste mundo de que só se aproveita a boa disposição que provocam: com o povão (de todas as nacionalidades) a invadir tudo o que são estâncias de ski em todos os países, em todos os hemisférios, houve que renovar o conceito de férias frias, que antes estavam reservadas a uma certa elite privilegiada. Agora, o que está a dar é… Groenlândia.
Não é neve mas é gelo, e o pacote turístico incluirá, com certeza, uma demonstração sentida de preocupação pelo fenómeno do aquecimento global do planeta, visível na alteração do ritmo dos degelos locais, substituindo assim em preocupação intelectual o que anteriormente era preciso demonstrar em destreza física nas pistas de ski. Segundo a mesma notícia, uma cidade perdida como Ilulissat com 5.000 habitantes, recebeu 15.000 visitantes no ano passado e conta receber o dobro já este ano.
Entre a galeria dos que já foram ou tencionam ir, conta-se John McCain, o candidato presidencial norte-americano, e Nancy Pelosi, a presidente do Senado, Romano Prodi, primeiro-ministro italiano e a chanceler alemã Ângela Merkel. E, adivinharam, para que os portugueses se orgulhem de ter um dos seus nestas galerias pueris (seria nisto que Jorge Sampaio estava a pensar quando mencionou o assunto na altura?), também o presidente da comissão europeia anunciou estar a fazer planos para conhecer a Groenlândia…
É evidente que este afluxo crescente de turistas, que a presença dos próprios políticos contribui para popularizar, é um factor que acelera ainda mais os efeitos locais do processo de aquecimento global que alegadamente os preocupa e que ali vêm testemunhar e denunciar… Mas isso são aquelas contradições cujo carácter benigno imediato da matéria as torna, felizmente, num assunto ridículo e risível. É como a limousine e o avião particular em que Al Gore viaja à volta do mundo para o salvar

25 maio 2007

TV NOSTALGIA – 30


O título deste poste é, assumidamente, semi-verdadeiro: há nostalgia, mas não propriamente pela série de televisão que, com a designação de M*A*S*H, passou na televisão portuguesa nos finais da década de 70 ou nos princípios da de 80, não consigo precisar. As minhas recordações mais vincadas de MASH (sem os sinaizinhos intermédios) referem-se ao filme original de 1970 de Robert Altman, que me lembro de ter visto muito antes disso, em data incerta na primeira metade da década.

Para quem não conheça ou se lembre da série, MASH é o acrónimo da designação Mobile Army Surgical Hospital (Hospital Cirúrgico Móvel do Exército). O da história é o nº 4077 e o seu lema é Best Care Anywhere... (Melhor tratamento noutro sítio...) A acção decorre num hospital de campanha durante a Guerra da Coreia (1950-53) mas o tom geral é de paródia embora ele possa ser neutralizado por momentos de tensão com a chegada dos feridos da frente de combate. Mas aquilo que mais me impressionou desde o princípio foi o transporte desses mesmos feridos…
Os próprios genéricos, tanto do filme como da série, começam precisamente por aí, pela chegada dos helicópteros Bell-47 de evacuação médica, que parecem tão frágeis e são tão pequenos que as macas com os feridos tinham de ser transportadas fora da cabine do aparelho. Não devo ter sido o único a especular o susto por que passariam os feridos em geral ou como um ferido desmaiado que acordasse a meio do transporte e se visse ao ar livre a uns 300 metros de altitude sujeitaria a sua função cardíaca a uma prova severa…

A história da história audiovisual de MASH é um exemplo que contribui para a tese que defende que as probabilidades de sucesso de uma história têm que ser avaliadas sociologicamente porque dependem da disposição da sociedade em aceitar os temas que tratam. O filme MASH, quando foi lançado em 1970, foi aclamado pelos círculos intelectuais franceses (ganhou a palma de ouro do festival de Cannes nesse ano), interpretando-o como uma crítica em forma de paródia à Guerra do Vietname que então se travava.
Nos Estados Unidos o filme teve um sucesso muito moderado mas, mesmo assim, decidiu-se fazer uma série de televisão com base nas mesmas personagens – que pertenciam originalmente a uma novela cómica que havia sido publicada em 1968, escrita precisamente por um cirurgião militar que estivera na Coreia. A série começou a ser transmitida em 1972, embora alguns traços de algumas personagens tenham sido alterados em relação aos originais (Frank Burns, Hot Lips...), tendo em atenção o auditório mais abrangente de uma série televisiva.

Em 1972, Richard Nixon havia sido reeleito e, como prometera, as forças combatentes norte-americanas haviam sido retiradas do Vietname. A série manteve-se no ar, 1975 foi o ano da derrota final em Saigão, e deu-se um fenómeno curioso: quanto mais tempo passava e se esqueciam os traumas da Guerra do Vietname, mais a série M*A*S*H parecia ganhar em popularidade. É nessa nova fase que a série é reexportada para o estrangeiro, nomeadamente Portugal, onde – não sendo uma novidade – teve um sucesso muito moderado.
A esta distância dá para perceber quanto o tema marcava apenas pela novidade. Perdido esse efeito, a história até se pode considerar banal. Mas, quando a série terminou nos Estados Unidos, em 1983, parecia estar no auge da popularidade: o seu último episódio registou uma audiência que ainda hoje o faz o recordista de audiências televisivas para séries de televisão. Um dos paradoxos mais engraçados desta série é que, na TV, ela esteve no ar durante 11 anos (1972-83) embora a Guerra da Coreia, onde ela se inspirou, tenha durado apenas 3 (1950-53)…

24 maio 2007

ESTA TAMBÉM CHEGARÁ A MANDATÁRIA?...

Depois do mandatário tradicional, o que mandata (José Miguel Júdice), do mandatário financeiro (Saldanha Sanches), do mandatário sénior (Raul Solnado), do mandatário para a juventude (cujo nome me terá escapado, mas é seguro que há sempre um para estas coisas…), a imaginação dos assessores da campanha de António Costa estará à solta para o previsível anúncio da nomeação do Piloto e da Tareca (lembremo-nos da paridade...), mandatários respectivamente dos cães rafeiros e dos gatos vadios dessa Lisboa. A busca concentra-se agora no mandatário (Mickey? Clorofila?) das ratazanas de esgoto, esse animal tão simbólico de Lisboa e das grandes metrópoles em geral… Olhem se o ridículo matasse...

AS LIMITAÇÕES DOS ENSINAMENTOS DE SUN-TZU

Já há muito que se tornou frequente recorrer às obras de grandes mestres da estratégia do passado para as adaptar para a realidade empresarial. Mas o critério de adaptação parece ter-se baseado mais na notoriedade do autor enquanto estratega do que na aplicabilidade dos seus ensinamentos. Um exemplo muito concreto é o de Sun Tzu, autor chinês do Século VI a.C. Muito sinteticamente, a essência dos seus ensinamentos apontam normalmente para abordagens indirectas e soluções discretas para os problemas. Enfim, para gestores que tendam a cultivar o low profile*.
O paradoxo é que, no Ocidente em geral por razões culturais, ampliados em Portugal por razões específicas (a maioria dos gestores das grandes empresas são nomeados pelo governo, normalmente por critérios políticos), há a tendência para apreciar os gestores não só pelos resultados, mas também pela publicidade dada aos problemas que resolveram, sem reconhecimento pelos problemas que se evitaram que acontecessem. Apreender os ensinamentos daquele estratega é extremamente útil para tornar os gestores muito mais eficazes, mas pode não os ajudar muito a progredir na carreira…
Afinal trata-se apenas daquilo que qualquer guarda-redes descobre intuitivamente quando joga perante assistência. Quando se descobre com um opositor isolado à sua frente com a bola, o factor essencial para a defesa é a rapidez com que se avança e o percurso que se escolhe para intimidar e condicionar o remate do adversário que avança contra si. Mais do que uma boa defesa, procura-se provocar um péssimo remate… – e é essa a essência da abordagem indirecta! Mas toda a gente sabe que os aplausos, a fotografia e os comentários elogiosos – uma defesa por instinto!... – só aparecem depois…

É difícil explicar Sun Tzu a toda a assistência do estádio, mas convém ao bom gestor ambicioso, que queira aplicar os seus ensinamentos, oferecer um livro do mestre ao chefe. Ah, e mais importante, certificar-se que o chefe o leu e percebeu para poder apreciar quão valiosas podem ser a aparente discrição e inacção do seu subordinado…

* discrição

23 maio 2007

DO PLÁGIO

Segundo a definição que ouvi a Alfred Hitchcock, o crime perfeito é aquele que está a ser cometido agora e de quem ninguém ouvirá falar. A discrição é o atributo que faz a perfeição do crime. E um dos crimes mais cometidos – e que estará a ser cometido agora em inúmeros lugares por esse mundo fora – é o do plágio. Nos jornais, de onde extrairei a notícia que dá corpo a este poste, ele é pão com manteiga de qualquer provedor do leitor que queira mostrar independência, investigar as denúncias de leitores sobre as origens plagiadas de matérias ali publicadas porque parece que é coisa quase garantida: cada cavadela dá minhoca!
A notícia que acima sugeri, vem no Diário de Notícias de hoje e é, obviamente, sobre plágios. Mas doutros e de outros. Dos Gato Fedorento, de quem se parece ter descoberto agora que copiaram descaradamente o genérico do seu programa actual da RTP1 de um velho clip de um cantor francês dos anos 60 chamado Claude François. O facto é, também descaradamente, assumido por Zé Diogo Quintela quando interrogado pelo jornal a esse respeito. Lida a notícia, não lhes fica lá muito bem o expediente esperto de mudar ligeiramente a música para se evadirem ao pagamento de direitos, nem a omissão à fonte de inspiração no genérico…

Mas, de resto, não se percebe muito bem o que se pretende espremer adicionalmente do assunto a partir dali, mencionando que certos fãs do programa criticam agora os Gato Fedorento. Eu não sou fã e também os critico: o programa de Domingo passado esteve uns furos abaixo das minhas expectativas…Na verdade, é um pouco difícil descobrir a relevância da notícia não fosse a popularidade dos Gato Fedorento. Como aconteceu, lembremo-nos de outro exemplo, com as inúmeras notícias a respeito dos outros potenciais autores originais do Código da Vinci com quem o autor Dan Brown teve de se defrontar em tribunal…
Como uns verdadeiros úberes de vaca leiteira, potencialmente ricas no sentido próprio ou no figurado de fontes de notícia, a notoriedade destes plágios parece que têm muito mais a ver com a identidade dos potenciais (ou confessos) plagiadores do que com a gravidade do plágio em si. É como a fotografia das tetas de vaca que escolhi para ilustrar este poste numa simples alusão simbólica à capacidade de mugir assunto ou dinheiro em condições potencialmente remuneradoras e da qual confesso desconhecer completamente as condições de propriedade intelectual… Houvesse interesses a sério em jogo e seria imediatamente acusado de embelezar o blogue com umas tetas que não me pertenciam…

*Uma pequena notinha para (a falta d)o rigor da notícia, que poderia ter sido superada facilmente com uma consulta rápida a uma fonte tradicional dos plágios jornalísticos, a Wikipedia: o cantor em questão tornou-se famoso nos anos 60 e não nos 50 como, certamente por lapso, a notícia refere…

22 maio 2007

A TENDÊNCIA DO PODER EM PORTUGAL PARA TOLERAR AS MANIFESTAÇÕES MANTEIGUERIAS MAIS PRIMÁRIAS (Actualizado)

É uma pena que ninguém ainda tenha inserido no You Tube, um famoso discurso de Salazar – creio eu que comemorativo do décimo aniversário do 28 de Maio – onde ele proclama, por assim dizer, os principais princípios doutrinários do estado novo. Nesse discurso, Salazar socorre-se de uma anáfora*, usando a expressão não discutimos. Para a sua concepção do regime, nele não se discutia Deus e a sua virtude, a pátria e a sua história, a família e a sua moral, a autoridade e o seu prestígio, entre muitas outras coisas. Imensas outras coisas…
Mas não é a ideologia do estado novo que pretendo aqui discutir, mas sim o término desse celebrado discurso onde, conforme se vê e escuta no filme que o regista, à pergunta final retórica feita por Salazar, querendo saber quantos estarão dispostos a segui-lo, se ouvem os manteigueiros ao seu lado na varanda do poder proclamando, sem que ninguém os mandatasse, a sua disponibilidade e a dos outros, com vários gritos de todoooos! entusiasmados e sabujos, antes dos gritos desaparecerem sob o barulho dos aplausos da praxe.

Eu gosto muito de Portugal, eu gosto muito de muitas coisas portuguesas e gosto de as defender daquelas opiniões derrotistas que consideram como em Portugal é tudo mau, mas tenho que reconhecer o meu embaraço quanto à falta de exigência (e consequente falta de qualidade) que sempre manifestámos pela actividade dos manteigueiros. Passaram mais de 70 anos sobre as imagens do famoso discurso de Salazar mas o grau de sofisticação dos que rodeiam Sócrates estará aproximadamente na mesma do círculo de Salazar: basta observar Pedro Silva Pereira…

Mais do que isso, em termos sociais, para além da condenação genérica da actividade e de algum desprezo pelos seus praticantes, raramente vejo críticas contundentes, concretas e oportunas à prática. Só me lembro de uma situação digna de relevo: foi no primeiro episódio de O Tal Canal de Herman José, onde o director do Canal, Oliveira Casca (o próprio Herman) fazia o discurso inaugural da estação, enquanto o locutor (Vítor de Sousa) repetia metodicamente e em surdina todo o discurso, até que Oliveira Casca censurou, no seu discurso, os locutores que tentam repetir ipsis verbis os discursos proferidos…

É por falar em críticas concretas que demonstro a minha perplexidade pelo tempo decorrido depois do aparecimento da notícia do professor da DREN que terá sido sancionado pela respectiva directora regional por ter dado publicidade às piadas sobre a famosa licenciatura do primeiro-ministro José Sócrates. Essencialmente como aconteceu com todo o resto dos portugueses que prestaram atenção ao assunto e que as contaram ou as ouviram. É que, ao contrário da precedente, na actividade de inventar anedotas políticas, Portugal é um país de vanguarda…

É que os dias vão passando sem que seja desmentido o teor da notícia da sanção ao professor da DREN ou desautorizada a respectiva senhora directora…São esses atrasos, como aconteceu aliás com o próprio caso da licenciatura agora anedótica, é que transformam os farsolas em problemas políticos… E, normalmente, isso acontece por causa dos manteigueiros

* Anáfora: figura de estilo que consiste em repetir a mesma palavra ou expressão no principio de várias frases.

NOTA: Um agradecimento especial à Shyznogoud que me informou que boa parte do discurso de Salazar referido no poste está afinal disponível no You Tube.

21 maio 2007

ALEXANDRE II, O CZAR QUE LIBERTOU OS SERVOS

Alexandre II (1818-1881), o czar russo que reinou (e na Rússia dos czares reinar significa isso mesmo, reinar!) de 1855 até à sua morte, assassinado, contava com 15 trisavós (entre 16) de origem alemã entre os seus antepassados… E o seu décimo sexto trisavô, que era o czar Pedro III (1728-1762, também assassinado…), só era meio russo, porque o lado paterno da família era escandinava, dividida entre as casas reais suecas e dinamarquesas…Com esta árvore genealógica, tanto pior para a reputação eslava dos Romanov…

A análise do reinado de Alexandre pode ser uma boa base de partida para a controvérsia sobre a capacidade dos indivíduos influenciarem a história. É uma controvérsia interessante mas, que para se manter séria, está sujeita a muitas condicionantes, a maior das quais a de não se poder aplicar o método experimental: não se pode observar o que acontecerá se A fizer (ou não) o que efectivamente fez, para ajuizar do impacto do (não) feito. Embora se possa especular sobre o que aconteceria, isso é uma outra actividade que não História.

O poder de que os czares estavam investidos são daqueles casos raros da História em que é possível atribuir a um indivíduo a capacidade de levar a cabo transformações pelas quais é possível atribuir-lhe a responsabilidade. Um momento desses é o decreto de Alexandre II, de Março de 1861, em que são libertados da servidão 50 milhões de camponeses russos e se criam condições para um esboço de reforma agrária com a distribuição por eles de cerca de 100 milhões de hectares de terras pertencentes à coroa e à aristocracia latifundiária, que foram indemnizados pelo Estado.

Dois anos antes de Abraham Lincoln ter feito algo semelhante - mas sem reforma agrária - nos Estados Unidos em relação aos escravos negros e com um acolhimento de simpatia idêntico por parte da intelectualidade europeia, o czar russo parecia estar à procura de criar uma nova classe social campesina que lhe fosse fiel. É que o impacto social do seu decreto superava em muito o que aconteceu nos Estados Unidos: os escravos africanos eram menos de 20% da população norte-americana da época, enquanto os servos russos emancipados seriam um pouco mais de 50% de toda a população do império russo…

O conjunto de medidas de Alexandre II (como as de Lincoln…) foi muito mais complexo do que a bondade simples da emancipação dos servos: a liberalidade demonstrada por ele para com a autonomia finlandesa faz um contraste impressionante com a perseguição às nacionalidades polaca, ucraniana, lituana e bielorussa, do antigo reino polaco. E só as análises históricas que dispõem da presciência do que aconteceu 56 anos depois, em 1917, é que conseguem assegurar que as reformas de Alexandre II fracassaram porque vinham demasiado tarde

Por mim, prefiro considerar que aquelas grandes sociedades possuem certas estruturas nucleares, como se fossem esqueletos, que sofrem pequenas mas constantes mutações, mas essas estruturas estão muito para além do voluntarismo de quem dirige as sociedades. O segredo do sucesso de um dirigente pode estar em saber interpretá-las e acompanhá-las. Concretamente, quase 150 anos depois do decreto de Alexandre II libertando os servos, continua a parecer-me prematuro falar de democracia na Rússia. Como no passado, e após uma fase de transição nos anos noventa, na Rússia continua-se a preferir a direcção de um autocrata.
Para benefício da imagem da Rússia no exterior convém agora que a autocracia seja legitimada por umas cerimónias de ida às urnas. E elas fazem-se… Mas isso não torna Vladimir Putin num democrata, nem creio que seja isso que a grande maioria dos russos espera dele. São coisas que nem um czar consegue mudar…

20 maio 2007

O CONCURSO DE MISSES

Se bem consegui reconstituir, Paulo Portas aproveitou ontem a hora nobre dos telejornais para, um pouco ao estilo do ilusionista Luís de Matos, aproveitar o modorrento congresso do seu partido para fazer um truque para as câmaras: apresentar o candidato do partido a vereador da Câmara de Lisboa de forma a criar suspense, anunciando os membros da lista por ordem inversa, tal qual se costuma fazer na fase decisiva dos concursos de misses, onde se começa pelas duas damas de honor antes de anunciar a eleita.
Um senão desta metáfora que me ocorreu é que a Miss escolhida (Telmo Correia) não chorou ao ouvir a decisão. Também não havia nada por que chorar, pois apesar de anunciado com pompa e em plenos telejornais, esta Miss ainda não ganhou nada… Outro senão, mais cruel, é a constatação que, se as suas duas damas de honor (Teresa Caeiro e Luís Nobre Guedes), cada uma no seu género, até foram dotadas de alguma beleza pela mãe natureza, a Miss propriamente dita, decididamente não…
Como se costuma dizer nestas ocasiões: Votos de muitas felicidades!

19 maio 2007

O PESO DA COLABORAÇÃO AMERICANA PARA A VITÓRIA SOVIÉTICA

Quando em 25 de Abril de 1945, as vanguardas dos exércitos norte-americanos e soviéticos se encontraram no meio da Alemanha, sobre uma ponte destruída no Rio Elba, numa cidade chamada Torgau, num acontecimento que foi muito fotografado e propagandeado pelo seu simbolismo, assinalando a eminência da derrota da Alemanha, os vulgares soldados americanos descobriram, surpreendidos, que, de entre o vocabulário de meia dúzia de palavras inglesas que os seus homólogos soviéticos conheciam (em simetria com a meia dúzia de palavras de russo que eles conheciam...), se contava – e com muito apreço – a palavra Studebaker.
Ora Studebaker era a marca de uma construtora de camiões* que, ao abrigo da Lei de Empréstimo e Arrendamento (mais conhecida pela sua designação original em inglês: Lend Lease), fornecera ao Exército Vermelho 67.000 dos seus camiões US-6 x 4, ou seja, cerca de um terço de toda a sua produção de guerra. O caso dos camiões Studebaker foi um caso especial de imenso sucesso da aceitação de um produto norte-americano pelos soviéticos (veja-se abaixo a adaptação para rampa de lançamento dos famosos foguetes Katyusha), mas muitos outros casos houve, embora de menor visibilidade.
Costuma ser muito elogiada, e com toda a propriedade, a capacidade que os soviéticos demonstraram, logo depois da invasão de Junho de 1941, de transferir as suas indústrias militares para o Leste, para fora do alcance da progressão alemã, conseguindo ao mesmo tempo mantê-las em condições operacionais. Foi assim que a produção de guerra das indústrias soviéticas acompanharam, quando não superaram mesmo, durante o conflito, as alemãs quanto a equipamentos directos de combate como carros blindados, peças de artilharia, aviação de combate, armamento individual e munições. Mas para que isso fosse alcançado houve uma contrapartida que costuma ser menos divulgada…
Vale a pena referir que houve até uma fase inicial onde os soviéticos foram mesmo abastecidos com material de guerra de origem britânica e norte-americana. Mas, compreensivelmente, são muito raras as fotografias como a de cima, onde se vê uma tripulação soviética de um M-4 Sherman americano**. Mas isso nem era o mais importante porque os problemas principais para que a União Soviética se mantivesse na Guerra situavam-se na resolução do problema da quebra da sua produção alimentar e na manutenção de redes de distribuição. Para além da população civil que trabalhava nas fábricas, como alimentar o Exército Vermelho e assegurar-lhe a logística que o mantivesse em operações?

Tendo como referência a produção agrícola soviética em 1940, ela baixou para 60% no primeiro ano da invasão, e para 40% em 1942 e 1943. Em 1945 havia regressado ao nível de 1941. Este deficit foi, obviamente, colmatado por importações de milhares de toneladas de produtos em conserva norte-americanos. Quanto aos meios para coordenar a sua distribuição, entre Outubro de 1941 e Junho de 1942, os Estados Unidos entregaram à União Soviética 1.300 aviões, 2.250 blindados, 81.300 metralhadoras, 36.800 camiões, 56.500 telefones de campanha e 614.000 Km de fio telefónico***.

A Guerra-Fria fez com que, de um lado e doutro mas por razões diferentes, se passasse uma esponja sobre esse passado. Mas, se os números estiverem certos, impressiona o poder da máquina industrial norte-americana que abastecia assim os seus aliados enquanto nada parecia faltar aos seus próprios soldados: em Junho de 1941, a Alemanha começou a invasão com 1.830 aviões, 3.580 blindados e 600.000 veículos motorizados e entre Julho de 1942 e Junho de 1943, os Estados Unidos – faça-se a comparação – forneceram à União Soviética 3.000 aviões, 4.000 blindados e 520.000 veículos motorizados…

É óbvio que o que motivou tudo isto foi apenas o realismo político, que reconhecia que os soldados soviéticos que combatiam e morriam em luta contra os alemães também representavam menos soldados norte-americanos mortos nessa mesma tarefa… Mas, perante esta realidade, o que talvez surpreenda é que os soldados soviéticos não conhecessem mais palavras inglesas. Mas talvez a especificação do governo soviético que proibia que as rações de combate exportadas para a União Soviética e consumidas pelo Exército Vermelho contivessem qualquer menção à origem dos produtos enlatados possa explicar em parte essa ignorância…

* Embora continue a existir como empresa, a construtora de veículos foi desactivada em 1966.
** É compreensível que assim fosse. Também não são muito abundantes as fotografias de época com militares britânicos usando equipamento norte-americano...
*** Em valor, os produtos alimentares representaram 20% de todo o auxílio norte-americano e os veículos de transporte 23%. Nesta escala perde-se um pouco a proporção da alimentação fornecida que foi enorme: imagine-se o volume em latas de salsichas ou em sacas de arroz necessárias para que elas atinjam o mesmo valor de um camião... Mas os produtos industriais não especificados (não relacionáveis directamente com a actividade militar) quase atingiram os 40% do total!

18 maio 2007

O JEEP

Provavelmente o aspecto mais controverso do Jeep será a razão para que tenha aquele nome. Há quem defenda que a designação resulta da pronúncia em inglês das iniciais do nome do projecto inicial de concepção de uma viatura para o exército: general purpose (utilização geral) - gp, que, pronunciado dji-pi, acabou por se transformar no nome Jeep. Mas há quem conteste essa explicação e apresente outras.
Embora esteja muito mais divulgada a história das especificações feitas pelo exército norte-americano para uma viatura militar das dimensões de um carro utilitário, a verdade é que cronologicamente até foi a Wehrmacht alemã quem se tornou pioneira a encomendar uma viatura militar de propósitos e dimensões semelhantes à do Jeep à organização que viria a ser conhecida por Volkswagen. Chamou-lhe Kubelwagen (embaixo, do lado direito).
As diferenças entre as duas viaturas são também simbólicas das diferenças estruturais entre os dois exércitos durante a Segunda Guerra Mundial. O Kubelwagen alemão era uma prosaica adaptação para fins militares do Volkswagen, com um motor de 24 CV (60 no Jeep), arrefecido a ar (a água, no Jeep), com duas rodas motrizes (eram 4 no Jeep), mas mais leve e muito mais económico no consumo do que o Jeep (tinha um depósito de apenas 30 litros).

O exército alemão nunca foi muito rico em combustível e o Kubelwagen era uma mera viatura de transporte de oficiais, sem as características revolucionárias de transporte táctico de uma pequena secção de infantaria ou de plataforma móvel para transporte ou reboque de armas mais pesadas, que estabeleceram a fama do Jeep. As unidades produzidas durante o conflito também não tiveram nada que se comparasse: 50 mil Kubelwagens e 640 mil Jeeps (360 da Willys e 280 da Ford)!
Assim popularizado durante a guerra, por causa de alguns pormenores como o capot plano e perfeitamente horizontal que dava para mesa de refeições e ao mesmo tempo de palanque para os oficiais falarem às tropas, o sucesso fez com que depois de 1945 todos os exércitos o adoptassem e alguns países o viessem a produzir em modelos nacionais como são os casos do Land Rover britânico (acima), do Iltis e do G-Wagen alemães ou do UAZ soviético, entre outros. E o próprio Jeep original foi sofrendo várias evoluções (como se vê abaixo).
A adopção pelos norte-americanos do HMMWV (alcunhado de Humvee) na década de oitenta representou, de certa forma, uma ruptura com o conceito clássico do Jeep. A actual viatura militar regulamentar das forças armadas norte-americanas tem as dimensões (é 38% mais comprida, 33% mais larga e quase 100% mais pesada do que o Jeep original…) de uma daquelas verdadeiras banheiras americanas do tempo do petróleo a tostão com o carisma correspondente...
É verdade que a última missão onde eles têm aparecido (Iraque) também não as tem ajudado muito...

FORÇA, PAULO! AVANÇA, ´TOU CONTIGO, VAMOS EMBORA!...(Actualizado e Corrigido)*

Ainda são muitos os que se recordarão daquele boneco de Luís Nobre Guedes do programa Contra Informação que passava o sketch a incentivar o de Paulo Portas com os seus Força, Paulo! Avança, ´tou contigo, vamos embora!... Poderá ter sido uma injustiça, mas grudou a Nobre Guedes a imagem de alguém que estava sempre disposto a demonstrar-lhe um entusiasmado apoio político… mas do verbal.

Ao mesmo tempo, as últimas tendências da moda política destas últimas temporadas começaram a dar relevo a essas figuras de funções insondáveis que dão pelo nome de mandatários dos candidatos. Há mandatários nacionais, distritais, da juventude, provavelmente também da terceira idade e parece que os que dirigem as campanhas explicaram aos jornalistas para explicarem à gente que os mandatários são figuras importantes para a captação de votos…

Assim, aquele rapper (Pacman) que era mandatário da juventude de Manuel Alegre nas últimas eleições presidenciais e que dificilmente conseguia encadear duas frases é porventura o responsável de muito votos yooooh que o candidato-poeta recebeu. Se tiver sido verdade, a cidadania teve maneiras muito modernas e étnicas de se exprimir, yooooh!... Em contrapartida, o actual presidente da república deverá dever algo da sua função ao fado da Kátia Guerreiro e Mário Soares deverá agradecer parte dos seus maus resultados à incontinência verbal de Joana Amaral Dias…

Esta história dos mandatários parece ter progredido agora para uma nova fase, delirante. Os absurdos concretos que emergem da actual pré-campanha para a Câmara de Lisboa estão evidenciados neste poste. Quase tudo que ali se passa é ridículo. A começar por quem se recusa a candidatar, mas se disponibiliza para mandatar… Mas também a ideia de haver um mandatário financeiro da campanha de António Costa (Saldanha Sanches) para atrair votos... Regressando ao início deste texto, parece termos atingido a consagração como coisa séria da atitude evasiva do boneco de Nobre Guedes. Fazendo futurologia, ainda chegaremos às campanhas onde já há mandatários, só falta mesmo é arranjar o candidato…

Adenda: Já tinha afixado eu este poste quando leio que, segundo o Público de hoje, Luís Nobre Guedes, por mim considerado como o genuíno criador do verdadeiro espírito do mandatário moderno, mudou de bancada para a de candidato, agora a vereador da Câmara de Lisboa. Mas, muito (talvez mais...) importante ainda não se sabe quem é o seu mandatário. Será que ele não pode ser o seu próprio mandatário? Um dos melhores mandatários que o PP possui, de resto… Nobre Guedes, candidato e mandatário, como o Vidal Sasson, que era champô e amaciador, os dois num só…

* Um agradecimento profundo a um leitor atento com uma memória rigorosa.

17 maio 2007

AS TRÊS GUERRAS E AS TRÊS COMISSÕES EM ISRAEL

As três guerras convencionais e de alta intensidade que Israel travou desde a sua existência (1956, 1967 e 1973) foram todas muito breves. Dados os factores estratégicos dominantes, Israel nunca se pôde dar ao luxo de vencer os seus inimigos por exaustão. A guerra que durou mais tempo foi precisamente a última com tais características que Israel travou, e que foi baptizada de Guerra de Yom Kippur, por referência à data do feriado religioso judeu (6 de Outubro de 1973) em que egípcios e sírios desencadearam o seu ataque simultâneo.

Durou precisamente 21 dias (de 6 a 26 de Outubro), o que foi imenso pelos padrões das guerras anteriores (9 dias em 1956 e 6 dias em 1967) e isso aconteceu porque Israel passou metade desse período a perder a guerra tacticamente: o seu contra-ataque contra os egípcios só data de 15 de Outubro de 1973. E, para o levar a cabo, ficou a percepção que, se não fosse o armamento e munições que os Estados Unidos enviaram de urgência em ponte aérea para Israel (Operação Nickel Grass), o contra-ataque nunca teria condições materiais para ter tido lugar…
Essa foi uma grande humilhação para quem tanto prezava a sua autonomia estratégica, que tinha até levado Israel, numa fase anormal de embriaguez na fase final da guerra precedente (8 Junho de 1967), à provável ousadia de atacar por mar e ar um navio de espionagem electrónica norte-americano (USS Liberty), causando 34 mortos e 173 feridos entre a sua tripulação. É um episódio que permanece ainda hoje controverso (as explicações israelitas permanecerão duvidosas) e sobretudo esquecido, dada a vontade das duas partes em minorá-lo.

Mas a outra verdade é que a Guerra terminou tacticamente de uma forma claramente vantajosa para Israel. A suspensão das hostilidades foi um alívio para o exército egípcio que se encontrava completamente cercado. Na outra frente (síria), os blindados israelitas estavam prontos para avançarem até Damasco. Tudo acabou bem mas, como no apuramento do Benfica para a final da Taça dos Campeões de 1990 contra o Marselha, ficou nos israelitas um travo amargo na vitória, como o do golo irregular de Vata

Tratar-se-á adiante do impacto da Guerra na sociedade israelita mas, entre as suas elites e em termos estratégicos, os países árabes haviam conseguido demonstrar-lhes, que a sua opinião sobre a situação estratégica de Israel se assemelhava aquela que o IRA veio a sintetizar no futuro, depois de falharem um atentado contra Margaret Thatcher em Brighton em 1984: Hoje não tivemos sorte, mas lembrem-se que só é preciso que tenhamos sorte uma vez. Vocês vão precisar de ter sempre sorte*.

Na sociedade israelita, a forte sensação de segurança colectiva que ficara da vitória esmagadora de Junho de 1967 perdeu-se logo na primeira semana de guerra, quando as notícias das frentes pareciam tão graves que levavam a pôr em causa a própria sobrevivência do Estado de Israel. E foi esta sensação geral de que a Guerra acabou bem, mas correu mal, que esteve por detrás da decisão do governo de Golda Meir da formação de uma Comissão, denominada Agranat a partir do nome do juiz presidente.
Tratava-se de uma Comissão com aqueles objectivos clássicos de encontrar bodes expiatórios que aliviassem uma situação política incómoda ao governo, como se percebe das conclusões e recomendações finais: as demissões do Chefe de Estado-Maior do Tsahal**, dos dois responsáveis principais das Informações do Estado-Maior, a aposentação compulsiva do comandante da Frente do Sinai (que combateu contra o Egipto) e a transferência compulsória de outros oficiais de informações de patente inferior.

No entanto, as conclusões do relatório, saído em Abril de 74, foram consideradas como demasiado benignas quanto às responsabilidades políticas atribuíveis quer à primeira-ministra Golda Meir, quer ao ministro da Defesa, Moshe Dayan. O facto acabou por provocar um efeito de ricochete e os dois políticos tiveram que se demitir. E assim se criou o precedente de que relatórios de objectivo semelhante ultrapassassem a fronteira da avaliação técnica dos acontecimentos para se pronunciarem também sobre a responsabilidade política.

Quanto às lições estratégicas de Outubro de 1973, elas foram absorvidas e parcialmente solucionadas com a redução dos inimigos externos de Israel, através da assinatura dos Tratados de Camp David entre Israel e o Egipto (1978). Meia dúzia de anos depois da Guerra do Yom Kippur (1973) e uma dúzia depois da dos Seis Dias (1967), Israel havia estabelecido acordos e um modus vivendi com dois dos três países inimigos com cujos exércitos o seu se confrontara naquela altura (Egipto e Jordânia).

Na perspectiva israelita, apenas restava o problema civil dos palestinianos dentro das fronteiras de segurança de Israel e o militar dos dois países do Norte de Israel, Síria e Líbano, muito embora o problema do segundo fosse passível de gestão através de um sistema de apoios e equilíbrios entre as facções militares em que o poder libanês se decompusera no seguimento da Guerra Civil libanesa de 1975. No entanto, o status quo foi considerado insatisfatório por Israel em 1982, quando o Tsahal invadiu o Líbano, para desalojar dali os guerrilheiros da OLP, que flagelavam o norte de Israel.A invasão do Líbano em Junho de 1982 tornou-se o padrão dos novos conflitos para onde Israel se tem visto arrastado, onde não existe uma verdadeira contestação ao seu poder militar mas onde os seus oponentes se evadem a reconhecer-lhe politicamente as vitórias militares, fazendo o tempo arrastar-se a seu favor. Entretanto, enquanto se espera, a disputa transfere-se para a conquista das simpatias da opinião pública. Foi o que fizeram Yasser Arafat e a OLP naquela altura, cercados pelo Tsahal em Beirute.

Do ponto de vista militar o Tsahal invadiu o Líbano pelo Sul, derrotou os dispositivos militares que se lhe opuseram, chegou até Beirute onde cercou a OLP, podê-la-ia ter eliminado militarmente. Mas a solução política para a disputa já se arrastava há três meses quando Israel deixou que se cometesse uma manobra colateral por parte de milícias libanesas suas aliadas que ficou conhecida pelo Massacre de Sabra e Chatila*** (acima) e que se tornou para si num completo desastre em termos mediáticos.

Também nesta ocasião se formou posteriormente uma Comissão (Kahan) que, a propósito das responsabilidades israelitas no referido massacre, analisou também o beco estratégico para onde Israel fora conduzido com a invasão do Líbano. Dados os precedentes, a Comissão foi severíssima nas conclusões do seu relatório, recomendando a demissão do ministro da Defesa (Ariel Sharon), do responsável dos serviços de informações do Estado-Maior e a despromoção efectiva do oficial responsável pelo comando em Beirute.

É irónico como o conteúdo do relatório chegou mesmo ao limite de sugerir que Sharon não devesse voltar a ocupar mais cargos como governante israelita para o futuro… Mas também é simbólico como, após o precedente da Comissão Agranat, esta Comissão quis evitar o erro da redacção de um relatório anódino e, na dúvida, preferisse arriscar pelo excesso. Na realidade, essa sugestão da Comissão Kahan não teve efeito e Ariel Sharon veio mesmo a tornar-se primeiro-ministro de Israel…
Recordando os acontecimentos da invasão do Líbano de 1982, foi impressionante quanto a de 2006 repetiu precisamente os mesmos erros estratégicos de 24 anos antes, até nos pretextos demasiado despropositados para justificar o começo das operações****, e apenas tendo mudado o oponente, da OLP para o Hezbollah. Pior, o dispositivo táctico de defesa do terreno do Hezbollah havia evoluído comparativamente melhor com o estudo da invasão precedente do que parecia ter acontecido com as tácticas ofensivas de Israel…

Depois de um mês (entre Julho e Agosto de 2006) em que Israel progredia penosamente no terreno e andava à procura de um interlocutor válido que lhe fizesse concessões políticas rapidamente, mas sem o encontrar (sempre o factor tempo…), houve que apelar para a ONU, para as tais forças de interposição robustas e para o seu bluff (pífio) que Israel ainda podia desencadear uma escalada militar – como se Israel se dispusesse a sofrer uma outra degradação da sua imagem com as vitimas da escalada, igual à das vítimas do massacre de 1982…

A Comissão Winograd, cujas conclusões foram recentemente tornadas públicas, em 30 de Abril de 2007, foi constituída precisamente para se pronunciar sobre o conflito travado no Verão passado. Neste caso – e não surpreendentemente, conhecidas as conclusões das suas antecessoras – a Comissão concluiu por críticas severas à conduta do primeiro-ministro Ehud Olmert, à do ministro da Defesa Amir Peretz e à do Chefe de Estado-Maior do Tsahal, Dan Halutz.

Há que reconhecer que escrever postes pode implicar um exercício de simplificação. No entanto esse exercício não pode ser levado a extremos que deturpem a essência das ideias. Por tudo aquilo que escrevi atrás, considero que tentar associar e equiparar, ainda que subtilmente, as conclusões das Comissões Agranat e Winograd além das guerras que as antecederam, para além de platitudes que sempre se podem escrever a esse propósito (ambas serem israelitas ou terem sido presididas por juízes...), é um exercício descabido, como o que José Pacheco Pereira fez no seu blogue, num poste do passado dia 6 de Maio*****.
José Pacheco Pereira excede-se tanto na imagem de erudição que cultiva tão cuidadosamente para o exterior que, às vezes, mesmo involuntariamente e por falha nossa, somos levados por ela. Ele não é obrigado a saber tudo. Ele nem sequer é obrigado a saber muito. Mas talvez devesse reconhecer que há assuntos em que o radicalismo das suas opiniões o leva a escrever demais sobre assuntos em que afinal parece saber pouco. Talvez este seja um desses casos… Podemos compartilhar a sua simpatia por Israel, como bastião do ocidentalismo numa terra que o não é, não podemos é adoptar uma atitude de simpatia e tolerância acrítica (qual nacionalismo emprestado…) em relação aos erros estratégicos que comete…

*Today we were unlucky, but remember we only have to be lucky once. You will have to be lucky always.
** Tsahal – Tsva Hahagana LeYisrael (Forças de Defesa de Israel), Forças Armadas israelitas
*** Campos de refugiados palestinianos situados no Líbano.
**** Em 1982 foi uma tentativa de assassinato de um grupo terrorista radical (Abu Nidal) ao embaixador israelita em Londres, em 2006 foi o rapto de dois soldados israelitas.
*****O recente relatório Winograd sobre a Segunda Guerra do Líbano, muito crítico do governo de Olmert e da liderança militar, não é inédito na tradição da democracia israelita. A Comissão Agranat, analisando a guerra conhecida como a do Yom Kippur, por se ter iniciado nesse dia de feriado judaico em 1973, foi também um documento duríssimo, que levou ao afastamento de alguns dos militares mais prestigiados do exército israelita, como o general Elazar e o chefe dos serviços de informação militar, e atingiu Moshe Dayan e Golda Meir, respectivamente Ministro da Defesa e Primeiro-Ministro. O Relatório Agranat (como o Relatório Winograd) gerou manifestações violentas contra a liderança política e militar de Israel e acabou por ter consequências políticas a médio prazo muito significativas.
E no entanto... os israelitas ficaram a um passo de ganhar a guerra e colocar os seus tanques nos arrabaldes de Damasco e do Cairo e só não foram mais longe porque os americanos lhes fizeram um ultimato, obrigando-os a parar. (…)