21 março 2007

O PAÍS DE QUE OS BONS JOGADORES DE STOP NÃO PODEM PRESCINDIR

Não sei se ainda se joga o Stop, aquele jogo onde, dada uma determinada letra, há que descobrir um número convencionado de artigos que começassem por essa letra. Mas eu joguei-o muitas vezes e, como bom jogador que me prezava de ser, possuía algumas referências em carteira, quando a letra saída era das mais difíceis. E uma dessas referências era Omã, a resposta difícil (e única – o que dava muitos pontos…) para países cujo nome começasse pela letra O.

Omã, até aos princípios da década de 70, era conhecido pela designação de Sultanato de Mascate e Omã – o que dava muito menos jeito para o jogo e era até pretexto para contestações… - o que reflectia de forma mais evidente a composição mista do país, onde sempre se combinaram uma sociedade nómada tribal, liderada por um guia espiritual religioso (o Imã) no interior sul, com uma outra sociedade urbana, de raiz marítima e comercial no litoral norte, próxima do Sultão.

A separar geograficamente aquelas duas comunidades históricas situa-se uma extensa cadeia montanhosa que acompanha, em paralelo, a costa norte do país – conforme se pode ver pelo mapa de Oman que encima este poste – e cujo ponto mais alto atinge os 3.000 metros de altitude. Quis o destino aqui, como em outras partes do mundo, que grande parte das reservas petrolíferas omanitas (17º lugar mundial) se situassem nas regiões do Sul, habitadas pelos nómadas…

Geograficamente pode-se considerar que a maior parte do território – tirando os 3% que compõem a pequena planície costeira a norte – é um pouco indistinto do núcleo central da Península Arábica (onde actualmente se situa a Arábia Saudita). Aliás, ainda hoje, parece haver controvérsia quanto ao traçado das fronteiras com o país vizinho, pois há publicações onde a área de Omã atinge os 310.000 Km2, enquanto outras a avaliam em 212.000 Km2… Ora 98.000 Km2, mesmo de deserto e areia, constitui uma área respeitável*.

Os antepassados das tribos nómadas contam-se, aliás, entre as primeiras aderentes ao Islão, ainda em vida de Maomé (Século VII). Muito antes disso, as cidades costeiras já haviam sido referenciadas por documentos de outras civilizações, dada a sua localização privilegiada, na embocadura do Golfo Pérsico, para os fluxos do comércio marítimo milenar que sempre se desenvolveu entre a Mesopotâmia e a Índia: recorde-se que uma pequena parte do exército de Alexandre Magno regressou da Índia por essa via.

Mas, surpreendentemente, logo no Século VIII, essas mesmas tribos nómadas passaram a divergir doutrinalmente da Umma**, aderindo à doutrina ibadita, à frente da qual passou a ser eleito um Imã. Paradoxalmente, foram as populações costeiras que se mantiveram fiéis à ortodoxia sunita. Nos séculos seguintes as duas regiões foram-se vergando sucessivamente à suserania distante e frequentemente não muito intrusiva das potências árabes, persas ou turcas predominantes na região.

Economicamente e de uma forma progressiva, aos circuitos comerciais no sentido Leste – Oeste (ligando a Índia e a Mesopotâmia ou o Egipto) juntou-se um outro, tão importante, no sentido Norte – Sul, envolvendo Omã e posições costeiras da África oriental, onde hoje se situa a Tanzânia (Zanzibar e Pemba), o Quénia (Mombaça) ou a Somália (Mogadíscio). Na época em que Vasco da Gama chegou à Índia, já esse circuito se tornara o mais importante para Omã e os entrepostos africanos eram dominados por comunidades muçulmanas mestiças.
Com a conquista daquelas posições africanas pelos portugueses, logo nos primórdios do Século XVI (1505), tornou-se lógico que fosse do interesse dos mercadores de Omã aderir ao mesmo espaço económico da tutela portuguesa (que, de outro modo, lhes estaria vedado). Assim, a partir de 1508, os portugueses apoderaram-se de Mascate e Sohar (portos à entrada do Golfo Pérsico), um feito de armas que enobrece os conquistadores mas onde se suspeita de conivência dos locais.

Aliás, pormenor curioso e se as minhas informações estão correctas, ainda há hoje na fortaleza de Mascate um velho canhão português do Século XVII, onde a tradição aconselha as mulheres locais com problemas de fertilidade a se sentar… Sem querer desenvolver o assunto para o extenso capítulo de antropologia que esta tradição com certeza merecerá (mereceu?), por não ser especialista da matéria, o facto em si dá a imagem de uma guarnição portuguesa memorável, mas não propriamente por razões militares…

Aliás, a presença portuguesa só terminou em 1650 e causada de uma revolta das tribos nómadas lideradas pelo seu Imã, que se tornou também no soberano da região litoral. Em coerência, cerca de uns 40 anos depois, também as regiões da África Oriental se vieram a libertar da tutela portuguesa, aderindo ao império comercial que se formou nas orlas do Índico e que se estendia desde Gwadar (cidade do Paquistão actual) até à ilha de Mafia, ao largo da costa da actual Tanzânia.

Vale a pena realçar que a fonte de prosperidade mais importante deste império comercial reconstruído que, a partir do Século XVIII, passou a ser governado por um Sultão, foi o tráfego de escravos entre a África negra e a Península Arábica. A importância relativa das suas regiões variou de tal maneira por causa disso que, entre 1840 e 1856, o Sultão de Omã mudou a sua capital para Zanzibar, tornando Omã um caso único de um estado não africano que teve o seu centro de decisão política em África***.

A parcela africana do império tornou-se independente da asiática em 1861, com dois filhos do Sultão a herdarem os títulos de Sultão de Omã e de Sultão de Zanzibar. Mas, enquanto este último acabou por cair sob a alçada britânica, Omã sempre se manteve, ainda que ficcionalmente, independente. Mas a tutela por detrás do trono era britânica (desde 1890), e muito embora houvesse uma grande autonomia do Imã e das populações nómadas do interior, segundo um Tratado assinado em 1920.
Foi precisamente naquelas regiões que vieram a ser descobertas jazidas de petróleo (em 1964, já depois das descobertas dos países vizinhos), inflamando ainda mais uma guerra civil quase ignorada que se vinha a travar em Omã, entre as forças militares do Sultão – com assessoria britânica e iraniana – e os irregulares nómadas – com apoio dos rebeldes iemenitas e do Egipto de Nasser. Essa guerra terá servido de inspiração ao álbum Oásis em Chamas de Bernard Prince, da autoria de Hermann e Greg (ver em baixo e poste anterior).
Em 1970, muito provavelmente com intervenção britânica, houve um golpe de estado onde o actual Sultão (que tinha então 30 anos) depôs o seu pai, iniciando um novo regime que, embora moderno, é de um despotismo esclarecido à boa maneira dos antigos monarcas europeus do Século XVIII como Frederico II da Prússia, Catarina II da Rússia ou José II da Áustria. O Sultão continua a ser um monarca absoluto e os pelouros das Finanças e dos Negócios Estrangeiros dependem exclusivamente de si.

As receitas do petróleo têm conseguido comprar um certo nível de paz social, embora houvesse que extinguir militarmente a guerra civil que se travava no interior. A prosperidade tem atraído imigrantes, com predominância de originários do subcontinente indiano (estima-se que eles já sejam ⅓ da população total), mas a sua presença tem influenciado sobretudo as mudanças na zona litoral, a que historicamente foi sempre a mais cosmopolita.

O contraste acentua-se com o interior, onde os resultados das eleições que o Sultão autoriza que se realizem para uma Assembleia Consultiva (Majlis al-choura - as últimas foram em 2003), apenas confirmam o carácter tribal da sociedade (não são autorizados partidos políticos): dos seus 83 membros (2 mulheres), a maioria são eleitos com uma votação esmagadora, de acordo com as recomendações dos chefes. Também aqui, como no Iraque, a democracia não é coisa que se instale de um dia para o outro...

*Como comparação, Portugal tem uma área de 92.000 Km2.
** Palavra que se pode traduzir por comunidade ou nação islâmica, num sentido semelhante em que se emprega a palavra Cristandade para os cristãos.
*** Durante o período colonial aconteceu precisamente o contrário: nas capitais da Europa decidia-se o que acontecia em África.

4 comentários:

  1. Belo post. Recorde-se que a campanha do Oman e a tomada de Socotorá marcou o início da carreira de conquistas de Afonso de Albuquerque no Oriente, amtes de se dirigir a Ormuz, porta do comércio do Mar Vermelho.

    Quanto ao Sultão, é bem verdade que reina despoticamente sobre o seu estado. Mas a evolução do sultanato desde a sua tomada de poder é abissal: escolas, hospitais, estradas e outras estruturas num país onde em 1970 se andava preferncialmente de burro, não se sabia o que era uma universidade e as portas das muralhas de Mascate se fechavam a uma determinada hora da noite. O oman passou da Idade Média para o Iluminismo com tecnologia moderna em escassas décadas.

    Ah, e também tenho saudades de jogar ao stop.

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  2. Agradeço o comentário e não se extraia do poste alguma crítica endereçada ao Sultão. Globalmente, como refere, a sua actuação tem sido considerada positiva, assim como também acontece com os soberanos do Bahrein, Qatar ou os dos Emiratos Árabes Unidos.

    Mas a realidade é que aqueles regimes políticos decalcam modelos que eram os europeus há quase 250 anos atrás, antes da Revolução Francesa e da Revolução Industrial. E aos déspotas esclarecidos, costumam suceder-lhes outros déspotas... menos esclarecidos.

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  3. Este post está, como é hábito aqui, espectacular. Quer atendendo à correcção quer à precisão e à minúcia de informação.

    Pena não o ter lido antes...

    beijos.

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  4. Quando eu jogava ao STOP (que eu conhecia por outro nome, algo como "Vamos jogar aos Países/animais") na década de 80 ainda não tinha ouvido falar de Omã :)

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