22 fevereiro 2007

476 D.C., O ANO EM QUE NADA DE EXTRAORDINÁRIO ACONTECEU

Resolveram os historiadores escolher algumas datas de acontecimentos significativos para assinalar fronteiras entre as Eras em que se convencionou dividir as fases da nossa História. Assim, para mencionar apenas os períodos de há 2.000 anos para cá (d.C.), o ano de 476 assinala o fim da Antiguidade e o começo da Idade Média, 1453 o fim desta e o começo da Idade Moderna que em 1789 termina para vir a ser substituída pela Idade Contemporânea actual.

Normalmente, quando apresentadas, seguem-se as explicações que os processos de mudança ocorrem a ritmos lentos e que a data em si é apenas uma convenção assinalando um conjunto mais vasto de transformações. Além de 1453, a data de 1498 (descoberta do caminho marítimo para a Índia) também é significativa no anúncio do começo da Idade Moderna e o mesmo acontece com 1776 (início da revolução americana) em relação à Idade Contemporânea.

Mas, mesmo simbólicas, tanto o início da revolução francesa em 14 de Julho de 1789, como a queda de Constantinopla em poder dos Turcos em 29 de Maio de 1453, foram acontecimentos carregados de significado e que assim devem ter interpretados pelos contemporâneos: conquistar e arrasar a fortificação onde se prendiam aqueles que desafiavam o poder real e ouvir o muezim chamar para a oração do alto de uma das mais importantes catedrais da Cristandade, tem de impressionar.

E o contraste é enorme entre aqueles dois acontecimentos com o que (não) aconteceu em Roma em 4 de Setembro de 476, no acto que se pretende simbólico do fim do Império Romano no Ocidente: a deposição do seu último imperador. Primeiro porque a deposição não teve lugar em Roma, mas em Ravena, uma cidade do norte de Itália; depois porque, em rigor, Rómulo Augusto não foi o último imperador do Ocidente, nem o cargo representava o depositário de poder de outrora.

Regressemos a uns anos antes da data de 476. No Século V, a corte imperial do Ocidente, que se estabeleceu em Ravena e já não em Roma, tornou-se numa máquina administrativa complexa onde a verdadeira distribuição do poder dependia muito do perfil dos intervenientes. Durante duas décadas (433-454), por exemplo, Flávio Aécio tornou-se, enquanto comandante militar, a figura dominante no Ocidente, deixando o imperador Valentiniano III na sombra até que este o decidiu eliminar, assassinando-o.

Enquanto o cargo de comandante militar podia ser ocupado por bárbaros, para se ser imperador era necessário ser-se cidadão romano. A aquisição desse estatuto era extremamente simples desde que se pertencesse à geração certa: bastava que um dos pais o fosse para sê-lo automaticamente. Era o que acontecia com Aécio. Mas não com muitos dos comandantes militares que lhe sucederam no cargo que, na impossibilidade de o ocupar, escolheram figuras menores para as funções de imperador.

A adicionar a isso, havia ainda que contar com as influências externas, das grandes regiões que ainda dependiam formalmente de Roma, como a Gália, a Península Ibérica e África, que naturalmente se sentiam no direito de se pronunciar quanto à pessoa escolhida para o cargo de imperador. Finalmente, ainda mais importante, havia que levar em conta o reconhecimento por parte da corte homóloga de Constantinopla, indispensável para legitimar a escolha.

Sinteticamente, nos 22 anos que decorreram entre o assassinato de Aécio, em 21 de Setembro de 454 e a famigerada data que assinala o começo da Idade Média houve 10 imperadores, o que dá uma média de 2 anos e uns poucos meses de reinado, a fazer lembrar a tradicional duração dos governos italianos do pós-guerra. É significativo que os últimos imperadores já nem precisavam de ser assassinados, apenas depostos e desterrados quando ocorriam os pronunciamentos militares.

É assim que se compreende que em Setembro de 476, além do imperador em título, chamado Rómulo Augusto (o filho adolescente de um general bárbaro, Orestes, que, como cidadão romano, superava os problemas de cidadania do pai), vivessem ainda dois ex-imperadores, um deles (Glycerius) saciado das suas ambições com a titularidade da diocese de Salónica, na Grécia (!), mas outro (Julius Nepos) que se assumia como pretendente ao título de que fora recentemente desapossado.

As pretensões de Julius Nepos eram para ser levadas a sério pois era casado com a sobrinha (daí o nome*) do imperador do Oriente, Leão I, embora em 476, já fosse o genro do Leão I, Zenão, o imperador romano de Constantinopla. Mas quando Odoacro, o chefe bárbaro que havia morto Orestes e deposto Rómulo Augusto, o abordou a pedir a confirmação do seu gesto, Zenão só o fez na condição de Odoacro reconhecer Julius Nepos como imperador do Ocidente, o que foi feito.

Confirmando-o, houve moeda romana que foi emitida em Itália e no Norte da Gália depois de 476 em nome de Julius Nepos, embora Odoacro nunca tenha permitido que o imperador desterrado regressasse da Dalmácia, onde residia, para Itália… Resumindo, pondo-nos na situação de um eventual contemporâneo presencial dos eventos em Ravena em Setembro de 476, houve um general que deu um golpe de estado, matou o antecessor e disse que um puto, que não mandava nada, deixava de fingir que mandava...

Atendendo ao ambiente vigente, a nossa testemunha não devia ter ligado importância nenhuma aos tempos históricos que vivia porque estes acontecimentos lhe pareceram mesmo muito pouco importantes. E a culpa não estará na sua falta de argúcia, mas nos historiadores do futuro, que empolarão e atribuirão um simbolismo desmesurado a um acontecimento que terá sido horrivelmente mal escolhido para assinalar a transição da Antiguidade para a Idade Média…
 
 
* Nepo é a palavra latina para sobrinho, presente na língua portuguesa na palavra nepotismo (originalmente a expressão empregava-se para os sobrinhos do Papa)

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