04 janeiro 2007

O MUNDO SEGUNDO ADAM SMITH E SEUS SEGUIDORES

É impossível não reconhecer os méritos da argumentação desenvolvida por Adam Smith (1723-1790) no seu livro de 1776 An Inquiry into the Nature and Causes of the Wealth of Nations (abreviado para A Riqueza das Nações). O que dele consta constitui uma excelente base explicativa para os fenómenos que regem a actividade económica. Só que o livro de Adam Smith (que era professor de Filosofia Moral), que é considerado um dos fundadores da disciplina da economia, projecta-se muito para lá desse campo.

E, apesar de poder ser considerado aparentemente um cínico, por considerar que o egoísmo de cada individuo seria a força determinante para o estabelecimento das relações sociais, ao mesmo tempo pode ser considerado um optimista ingénuo, ao acreditar que as eventuais distorções económicas e sociais daí decorrentes se corrigiriam automaticamente, por efeito dessas mesmas regras que designa por mão invisível.

Concretamente, Smith poderá ter escrito qualquer coisa parecida com um não será por causa da benevolência do merceeiro, do padeiro ou do homem do talho que conseguimos o nosso almoço, mas devido ao interesse egoísta deles mas onde poderia depois acrescentar que apesar do egoísmo e avidez natural, é-se levado por uma mão invisível a fazer quase a mesma distribuição de bens básicos que teria lugar se o Mundo tivesse sido dividido em partes iguais por todos os habitantes.

É evidente, a esta distância de 230 anos, que esta expectativa optimista de um fluxo natural de riquezas do topo da pirâmide social para as bases – da mesma forma que as taças de champanhe na base se iriam enchendo na pirâmide da imagem acima – nunca se veio a verificar. A capacidade aquisitiva das classes mais baixas são importantes em termos económicos para a aquisição dos produtos de grande consumo e o seu bem-estar é importante em termos políticos por causa da situação social (as eleições nos países que a isso se dedicam), mas aí terminam as preocupações dos do topo da pirâmide com os cá de baixo.

Na teoria, não ganharam notoriedade os que, dentro da mesma corrente de pensamento liberal, tentaram colmatar esta sua lacuna gritante no que respeita aos mecanismos de redistribuição mais equitativa da riqueza dentro da própria sociedade e, na prática, nada de substancial aconteceu quanto a essa redistribuição, a não ser sob efeito de coacção social e da sua utilização política. No princípio da década de 1930, todo o modelo liberal ruiu, e a falta de um colchão social efectivo (em baixo, distribuição de sopa aos desempregados) acabou por dar azo ao aparecimento de regimes totalitários mesmo em países e sociedades consideradas evoluídas (como a Alemanha nazi) onde os recém chegados se apoderaram de todos os mecanismos de poder do estado: um novo topo da nova pirâmide social.

O modelo económico liberal na fase seguinte do pós-guerra (1945) mostrava-se esgotado e, além disso, era considerado o culpado pela situação. A isso, há que adicionar ainda as preocupações norte-americanas da Guerra-Fria quanto à utilização por parte dos soviéticos das classes sociais mais baixas como armas eleitorais para a eleição de governos neutrais ou hostis*. Por conveniência estratégica e embora debaixo da mesma designação de keynesianismo, a prática na Europa e nos Estados Unidos divergiu alguma coisa quanto à função redistributiva da riqueza, sendo a versão europeia geralmente muito mais protectora contra os limites extremos de pobreza.

O reaparecimento das teorias do liberalismo na década de 1980 trouxe o benefício de contradizer os excessos de um keynesianismo que não havia sido contestado durante décadas. Mas era uma doutrina ainda limitada pelas contingências da Guerra-Fria, porque o retornado liberalismo, mau grado todas as suas propagandeadas vantagens, não ultrapassara o grande problema teórico da redistribuição da riqueza, constatados que estavam os fracassos das utopias originais de Adam Smith. A resposta dos seus adeptos de então (e que continua a ser a da maioria dos de hoje) pode condensar-se num: os pobres que se lixem, vão trabalhar malandros!

Com o fim da União Soviética terminou grande parte desse problema, porque os pobres podem ir lixar-se à vontade e os comunistas podem ascender ao poder na maior parte dos países do mundo que isso já não incomodará os Estados Unidos. Os livros de história estão fechados e há esta sensação global que, predominando a economia, os poderes políticos são apenas as capas frontais de enormes poderes económicos que lhes estão por detrás, as verdadeiras sedes de poder. Poderá ser essa a aparência, poderá mesmo ser essa a essência da situação actual, mas tudo dependerá sempre do perfil do dirigente político.

Abra-se o tal livro de história e recorde-se que Hitler enriqueceu os Krupp, mas pô-los a produzir aquilo que ele necessitava para as suas forças armadas. E nunca é de mais recordar o que Vladimir Putin fez recentemente ao que foi o poderoso patrão da Yukos, Mikhail Khodorkovsky, preso na Sibéria. Entretanto, como que debruçados numa viatura de três rodas (a quem a quarta roda faria muito jeito, por causa da estabilidade: o tal problema da redistribuição da riqueza…), alguns teóricos actuais do liberalismo económico continuam a dedicar-se com zelo à afinação do motor…

* Eram anos em que os Partidos Comunistas Francês e Italiano recolhiam, em eleições livres, 20 a 25% do voto popular.

Nota: a metáfora do enchimento das taças de champanhe pertence originalmente ao antropólogo Felipe Fernandez-Armesto.

1 comentário:

  1. Excelente post. É refrescante haver alguém que se lembra da submissão do poder económico ao poder político!

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