09 janeiro 2007

D´ARTAGNAN CONTRA ZORRO

A leitura de um livro como aquele cuja capa ilustra o começo deste poste (Civilizations, de Felipe Fernández Armesto) obriga-nos a extremos cuidados quanto às possibilidades de se poderem fazer comparações ou mesmo de equiparar civilizações que estejam muito afastadas no espaço e no tempo, tantos são os contributos para que cada uma delas possua uma identidade própria.

Mesmo assim, não deixo de correr o risco de tentar mostrar quanto podiam ser semelhantes os graus de desenvolvimento civilizacional das sociedades europeias nos três séculos antes do nascimento de Cristo e o das sociedades africanas ao Sul do Equador nos três séculos que antecedem a repartição de África pelas potências europeias, nos finais do Século XIX.

Aquilo que conhecemos das descrições das conquistas romanas na Europa Ocidental que sobreviveram até aos nossos dias (A Guerra das Gálias, de Júlio César, por exemplo) desenham-nos um grau de sofisticação técnica, de riqueza material e de organização política que estão muito próximas das que são descritas pelos exploradores coloniais europeus do Século XVIII e sobretudo XIX.

As analogias não terminam aí. Assim como César enumerava as diversas tribos que povoavam a Gália, uma organização tribal bastante semelhante podia-se encontrar quando os exploradores se internavam nos territórios que hoje pertencem a países como a Tanzânia, Angola, Moçambique ou a África do Sul. Pontualmente, perante uma ameaça externa, formavam-se largas confederações de tribos para a defrontar, chefiadas por um dirigente supremo.

Terá sido o caso de Viriato na Lusitânia (Século II a.C.) e de Vercingétorix na Gália (Século I a.C.), e também de Gungunhana, nas províncias do Sul de Moçambique (Século XIX). Todos eles foram derrotados e conhecemo-los apenas porque foram depois aproveitados como símbolos políticos. Mas, mesmo os que saíram vitoriosos das ameaças, a maioria é-nos desconhecida porque os estados que erigiram raramente lhes sobreviveram. Em qualquer das duas épocas.

As analogias prolongam-se ainda pela existência de feitorias costeiras, destinadas ao comércio marítimo, que serviam de entrepostos para as transacções. Aos fenícios, gregos e cartagineses na Europa da Antiguidade, correspondiam, 20 séculos depois, os estabelecimentos de portugueses, holandeses, franceses, britânicos e omanis* distribuídos pelas costas africanas, concorrendo por vezes entre si.

Em África, independentemente dos impérios precários atrás mencionados, a tribo sul-africana dos Zulus parecia estar, nos finais do Século XVIII e durante o Século XIX, num caminho de desenvolvimento de novas técnicas e tácticas militares, que lhes estavam a permitir expandir-se de uma forma consistente a sua supremacia pelos territórios adjacentes, da mesma forma que acontecera outrora com outros povos no velho continente.

Entre as novas técnicas contavam-se novas armas, a assegai** (representados na fotografia abaixo três tipos), a introdução de métodos de treino e instrução militar, a adopção de patentes militares e a criação de um embrião de organização logística de apoio. A táctica predilecta das formações zulu era o dispositivo em forma de cornos de touro, onde as tropas inexperientes se dispunham nos flancos (eram os cornos) enquanto os veteranos asseguravam o embate com o inimigo no centro (eram a testa).
Compare-se a discrição do parágrafo anterior e a sua enorme semelhança com aquilo que ouvimos falar da falange greco-macedónica e da sarissa ou do pilo e da legião romana (embaixo) e das formas como as unidades militares da Antiguidade Clássica se dispunham para o combate e talvez se comece a desvendar aqui a razão para o anacronismo do título deste poste onde menciono e associo dois heróis ficcionais, de dois continentes diferentes, separados por quase 200 anos.
Por um lado, no velho continente, a hierarquia dos sistemas militares está perfeitamente hierarquizada, conhecendo-se os episódios em que a falange macedónica eliminou o sistema persa, que havia sido o construtor do primeiro grande império euro-asiático, para depois a legião romana se impor à falange dos gregos antes de vir por sua vez a ser submergida, meio milénio mais tarde, pela mobilidade da cavalaria germânica e dos povos das estepes.

Por outro lado, em África, os exércitos zulus (acima) estavam a viver um interessante processo de aperfeiçoamento quando foram confrontados com uma desvantagem tecnológica insuperável, protagonizada não só pelas armas de fogo dos africânderes, que com eles chocaram na busca de terras, como sobretudo pela capacidade de produção de fogo contínuo das metralhadoras do exército britânico.

Racionalmente, a minha questão não faz qualquer sentido, parece ser até uma brincadeira. Terá sido talvez por isso que terei utilizado para o título o nome de personagens de ficção juvenil… Mas não quero esconder quanto me intriga a resposta à pergunta sobre qual teria sido o desfecho de um combate, utilizando cada um dos contendores os seus dispositivos militares tradicionais, entre zulus e macedónios e entre zulus e romanos…

* Árabe, natural de Oman.
** Palavra que compartilha a origem (berbere) com a nossa designação zagaia.

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