31 janeiro 2007

OS CAGÕES

Confesso que retiro um certo prazer perverso – e, além de mim, desconfio que o mesmo acontece com uma esmagadora proporção de portugueses – quando alguém que é conhecido pela sua atitude arrogante – vulgo, um cagão! – passa por um daqueles espectaculares fiascos, especialmente quando isso acontece depois de ter anunciado previa e pomposamente o seu sucesso.

Ressalve-se aqui que há cagões que merecem o nosso respeito, porque, uma vez cagões, são cagões até ao fim, veja-se o exemplo de alguns aristocratas que assim subiram o patíbulo quando foram executados na guilhotina durante a Revolução Francesa*. Mas, são casos raros porque, na maioria das vezes, é bem mais fácil ser-se cagão, pode-se sê-lo sem se tornar necessário empenhar a própria vida.

E, embora a guerra de audiências de jornais seja um tópico a analisar continuamente, com a frieza de uma corrida de fundo, guardando os prognósticos para o fim**, a verdade é que os dados de audiência hoje anunciados (7,5% para o Expresso e 2,8% para O Sol) permitem concluir, para já e com segurança, que os portugueses afinal não estariam assim tão sedentos e ansiosos pelas profundas análises políticas do Arquitecto Saraiva conforme ele pensaria e anunciava…

Mais do que isso, agora que os semanários parecem estar a perder-se da vanguarda da discussão política em Portugal, como que se descobre na sociologia dos seus leitores uma espécie de fidelidade inerte de adepto de futebol: só interessa a cor da camisola, já nem interessa o nome do jogador. Que melão para o Arquitecto Saraiva que deve ter passado estes anos todos a pensar-se uma vedeta, um Luís Figo do jornalismo!...

*Parece não ter sido o caso de Luís XVI.
** Para quando a paciência dos investidores se esgota.

PAUL WOLFOWITZ, O FALCÃO QUE SE TENTOU ESCAPULIR, NÃO PELO MEIO DOS PINGOS DA CHUVA, MAS PELO MEIO DOS DENTES DO PENTE…

Já nem todos os que acompanham os assuntos de política internacional – especialmente a situação iraquiana – se lembrarão que uma das figuras que mais ênfase deu à invasão norte-americana do Iraque. Mais do que outros de maior proeminência mediática, Paul Wolfowitz, enquanto Subsecretário da Defesa, é considerado nalguns círculos como o arquitecto intelectual da intervenção americana no Médio Oriente.

E, mesmo tendo-se desenfiado a tempo, antes que o fiasco iraquiano fosse percebido na América em todo o seu esplendor, quando abandonou a administração para assumir a presidência do Banco Mundial, haverá muitos que não esquecem as responsabilidades de Wolfowitz pelo atoleiro onde os Estados Unidos se envolveram, e o lembrem em artigos de fundo, como este do mês passado, publicado no Los Angeles Times.

Complementarmente, o homem é um burgesso. Já Michael Moore o havia transformado num palhaço (acima) no seu filme sobre o 11 de Setembro, ao surpreendê-lo a lamber o pente antes de o passar no cabelo, para que este ficasse melhor assente… E as provas de amizade e consideração continuam: agora trata-se de um pequeno episódio quando em visita a uma mesquita na Turquia onde, naturalmente, teve de se descalçar… observem atentamente a fotografia abaixo:

Excluindo a priori, por absurda, a hipótese de que o vencimento de presidente do Banco Mundial não chegue para manter um guarda roupa minimamente em condições, há que adicionar a circunstância de, estando Paul Wolfowitz de visita à Turquia e conhecendo de antemão como era o programa da sua visita, não antecipasse que a visita à mesquita implicasse, como é tradicional, que tivesse de se descalçar…

Ou será que Wolfowitz, um dos ideólogos por excelência da implantação de democracias em terras muçulmanas, nem esse detalhe da cultura islâmica conhecia?

30 janeiro 2007

ASTÉRIX E O CALDEIRÃO

Se formos supersticiosos, será talvez por ser cronologicamente o 13º álbum das aventuras de Astérix (1969), que há no conteúdo deste Astérix e o Caldeirão algo de bizarro que faz com que necessite ser classificado separadamente num grupo à parte na distribuição das histórias imortais do pequeno guerreiro gaulês. Lida em sinopse, o início da história da aventura até nem parece distinguir-se do estilo que conhecemos:

Um chefe gaulês de uma aldeia das vizinhanças, Moralelastix, apresenta-se um belo dia na nossa aldeia, pedindo a Abraracourcix para lhe guardar todo o dinheiro da sua aldeia (que recolhera num caldeirão) até à passagem do cobrador de impostos romano. Abraracourcix aceita, nomeia Astérix como guardião responsável, o dinheiro é roubado, e Astérix é banido da aldeia até ter reparado a sua falta, enchendo o caldeirão de dinheiro…

Ao contrário de outras histórias, esta aventura não tem um argumento que permita um nível de leitura superficial que torne a história compreensível para as crianças mais novas: é impossível contá-la sem referir os impostos e o seu cobrador (um tema pouco presente em histórias infantis…) e a descoberta final de toda a trama é feita por métodos indiciários (o cheiro do dinheiro), o que deixa as crianças sem entender porque razão os maus são maus e Obélix lhes bate…
Contudo, possui momentos geniais, como o da representação teatral (pranchas 24 a 28) onde Astérix e Obélix participam, de que várias vezes me vim a lembrar na vida, quando a peça de teatro a que estava a assistir era assim… mais de vanguarda. Valha a verdade que Goscinny pôs o encenador a morrer pela sua arte ao recusar-se a ser libertado pelos gauleses: - Nunca! Acabo de ser contratado para representar em Roma, no Circo. Uma única representação, mas que representação! Com leões e tudo!... Será muito ao vivo.

Mas é de outra passagem de grande qualidade deste álbum que me costumo lembrar quando se invocam a destempo e a despropósito virtudes patrióticas nestas coisas de dinheiro, negócios e aquisições de empresas. Logo na prancha 3, ao ouvir o pedido do seu homólogo para lhe guardar o dinheiro, Abraracourcix manifesta a sua estranheza pelo pedido, visto que Moralelastix tinha a reputação de estar de boas relações com os romanos. Moralelastix indigna-se:

- Não tens o direito de duvidar do meu patriotismo! Eu negoceio com os romanos, seja… mas fiz-lhe sempre pagar o dobro do preço que teria pedido aos gauleses!
- E tu vendes muito aos gauleses? – perguntou Abraracourcix
- Não… os romanos compram-me tudo o que tenho para vender!...

Tivesse a OPA a correr bem a Teixeira Pinto, tivesse ele os meios e a habilidade para contrariar as manobras defensivas da La Caixa e dispensar-se-iam todas estas conferências de imprensa…

PARA QUANDO UM ESTUDO PARA AFERIR A SERIEDADE DOS ESTUDOS QUE SAEM NOS JORNAIS?



Ao ler o preâmbulo de uma notícia sobre um estudo encomendado pela Ordem dos Farmacêuticos em que se concluía – previsivelmente... - que a liberalização do sector do medicamento e das farmácias não vai diminuir os gastos com medicamentos, fica-se com a certeza da existência de estúpidos em qualquer dos pontos ao longo do circuito comunicacional, embora fique a dúvida sobre a sua localização.

A estupidez poderá estar nos clientes que encomendaram tal estudo, convictos que estudos tão descaradamente manipulados ainda são um processo válido de influenciar a opinião pública, poderá estar nos jornalistas e nos órgãos de comunicação social que divulgam os tais estudos tal qual os recebem, sem qualquer análise critica independente, ou poderá estar nos leitores que, ao fim deste tempo, ainda tomam por honestos tais trabalhos de pesquisa.

Para efectuar certos estudos é muito mais importante o conhecimento da natureza humana do que quaisquer outros aspectos do saber. Por exemplo, para responder a um estudo em que se perguntasse qual seria a probabilidade de que uma entidade qualquer publicitasse os resultados de um estudo que tivesse encomendado e onde as conclusões fossem contrárias aos seus interesses a resposta seria simples: zero.

E para chegar a essa resposta não seria necessário consultar qualquer livro de estatística… Mas será que existe alguma entidade interessada em promover e publicitar tal estudo?

29 janeiro 2007

A NACIONALIDADE DAS OPAS

Embora já se afigurasse possível que a OPA que o BCP anunciou pretender realizar sobre o seu rival BPI se viesse a saldar por um fracasso, depois de Jardim Gonçalves ter saído do seu retiro de Deng Xiaoping* para aparecer ao lado de Paulo Teixeira Pinto na última assembleia de accionistas do BPI, a sucessão de notícias posteriores a esse detalhe cada vez mais promovem essa possibilidade a um acontecimento de alta probabilidade.

E o remate final para que todo o episódio se transforme numa certeza de fracasso poderá ter sido dado com a insinuação de Paulo Teixeira Pinto a respeito da falta de patriotismo sobre quem o estará a impedir de concluir a operação com sucesso. Ora eu tenho o maior respeito pelas capacidades intelectuais do marido de Paula Teixeira da Cruz e seria com muito agrado que eu constataria que ele me retribuía essa mesma cortesia.

Sabe-se como estas disputas na aquisição de empresas alheias têm códigos muito próprios que os intervenientes devem conhecer de antemão – creio que neste caso os dois lados as conheciam. Por outro lado, pela complexidade das regras, costumam decorrer perante audiências muito limitadas e selectas. Ainda por cima, o eventual apoio dessas audiências ainda que organizadas em claques em nada contribuem para o desfecho da operação.

Assim sendo, não se percebe o benefício desta espécie de apelo ao apoio tardio ao patriotismo lusitano, gesto que, embora possa parecer simpático, o seu próprio autor estará farto de saber quanto é inconsequente na substância. Será uma aproximação ao gesto recente do FC Porto de Pinto da Costa que, perdendo um jogo em Leiria, logo deu em culpar a arbitragem como se as suas derrotas fossem acontecimentos impossíveis?

Eu não quero cometer a injustiça de equiparar a inteligência de Teixeira Pinto à esperteza de Pinto da Costa, mas visto daqui e deduzido assim, parece mesmo que ele perdeu a jogada para Fernando Ulrich e mostra ter mau perder…

* Assim como Deng Xiaoping manteve o controlo político na China depois de abandonar os lugares de maior destaque reservando para si apenas o de presidente da Comissão Militar Central, assim o faz também Jardim Gonçalves no BCP.

A COSTUREIRINHA

A propósito de fotografias simbólicas associadas à vitória aliada na Segunda Guerra Mundial, nesta fotografia de Maio de 1945 podem ver-se três soldados do Exército Vermelho pendurando a bandeira soviética no telhado do edifício do Parlamento Alemão, o Reichstag. Embora esta não seja a fotografia mais famosa daquele acontecimento, esta tem a particularidade de se conseguir identificar claramente o armamento que usavam.
Enquanto no soldado mais próximo da bandeira se nota a parte traseira de uma PPS-43 (em cima), os dois que estão na base do pedestal olhando para cima têm uma PPSh-41 (em baixo) pendurada em frente ao tronco. A primeira é um desenvolvimento da segunda (o número indica o ano de inicio de produção) e há quem defenda que tenha sido a melhor pistola-metralhadora concebida durante a Segunda Guerra Mundial. Mas é desta sua antecessora aqui retratada – muito mais conhecida – que quero falar.
Este tipo de armas era distribuído às unidades de infantaria de elite do Exército Vermelho durante a Segunda Guerra e a sua reputação enquanto armas muito adequadas ao combate de proximidade como era o caso do combate urbano cresceu ainda mais durante a fase dos combates finais para a conquista de Berlim. Como acontece com o equipamento soviético em geral, uma boa parte do seu sucesso residia na sua simplicidade de concepção, operação e manutenção. Findo o conflito, a PPSh-41 foi depois sendo progressivamente substituída pela AK-47.
Quase vinte anos depois do fim da Segunda Guerra, ainda os soviéticos deveriam ter milhões delas armazenadas (foram produzidas 6 milhões no total), quando os movimentos de libertação das colónias portuguesas lhes começaram a pedir material bélico. E foi assim que muitas delas acabaram a equipar os guerrilheiros que combatiam contra o Exército português durante a Guerra Colonial. Em baixo, veja-se uma PPSh-41 nas mãos da militante à esquerda de Amílcar Cabral nesta evidente fotografia de pose do PAIGC, dedicada ao ramo feminino da organização.
Embora na maioria das fotografias encenadas para propaganda predominem sempre guerrilheiros armados de AK-47 e RPGs, talvez por causa do prestígio das armas (que são mais modernas), nos verdadeiros relatos de guerra feitos pelos ex-combatentes, julgo serem mais frequentes as referências ao poder de fogo das PPSh-41, que no Exército português ganharam a alcunha de costureirinha, por causa do som reconhecível que produziam, parecido ao de uma máquina de costura.

É mesmo de Alma portuguesa, dar um nome assim com diminutivo, entre o respeitador e o quase carinhoso, a uma arma que tanta baixas deve ter causado entre os nossos…

28 janeiro 2007

HOUSE M.D.

Esta série de televisão tem, para mim, um aspecto que a faz ser apreciada e vários outros que a fazem sê-lo muito menos. E as segundas serão tão potentes que me fazem suspeitar de quem lhe proclama os méritos. O aspecto que me leva a apreciá-la e que, creio, se tornou na sua imagem de marca, é a excelente composição de Hugh Laurie, o actor que desempenha a figura central da história, o brilhante mas insuportável Dr. Gregory House.

Em contrapartida, o hospital onde House exerce toda a sua competência é um hospital inacreditável, no sentido literal da palavra. Quase não há enfermeiros, e quanto a técnicos ou outros médicos especialistas nem se vêm, porque a equipa que acompanha House percebe de tudo – imagiologia, análises clínicas, nefrologia, anatomia patológica… tudo. Fosse aquilo mesmo assim e Correia de Campos resolveria os problemas das urgências do SNS de uma penada…

Não se contesta que, para benefício da narrativa, nestas séries de carácter popular se proceda a simplificações, como acontece por exemplo em CSI, onde a existência de três ou quatro técnicos de laboratório com diferentes pelouros sintetizam a realidade de uma dúzia. Mas em House M.D. há um certo exagero na sintetização de uma dúzia de especialidades com os respectivos médicos e técnicos em… zero.

Segue-se o problema da emissora que transmite a série, a TVI, que, não lhe contestando a decisão de a transmitir à hora que muito bem entende, ainda lhe adiciona o péssimo hábito de a intercalar com intervalos publicitários que, suspeito, têm uma duração (mais de 20 minutos!) superior à do tempo útil da própria série em si. Por consequência, tornei-me um espectador especializado em metades de série House M.D

Finalmente, o que mais me irrita em House M.D., e que terá sido a causa mais imediata para este poste, e da qual nem os produtores nem a emissora têm a culpa, é a pose que tenho visto associada a quem se confessa admirador incondicional desta série e a chega a classificar, sem hesitação, como uma série de culto. O que me intriga porque, para quem não tem formação médica superior, creio que há uma enorme dificuldade em acompanhar a evolução das hipóteses de diagnósticos de House.

Vale a pena intercalar aqui um episódio, quando, em conversa, perguntei a um amigo qual era a sua concepção pessoal de derivada ao que ele se preparou para trautear a definição que vinha no livro e depois o interrompi, comentando que estava a perguntar qual era a concepção dele e não a de Piskounov, que era excelente e de certeza ainda melhor do que a minha. Episódio maldoso, de que me penitencio, confesso que, por vezes, bem gostaria de fazer perguntas similares noutras ocasiões e circunstâncias, sem a casualidade com que fiz aquela.

Esta é uma delas. Retiraria um prazer secreto e perverso em reunir num grupo aqueles que ouço a gabar ostensivamente a dita série, para lhes projectar um qualquer episódio de House M.D., cujo caso clínico os admiradores depois sintetizariam em palavras suas no fim do mesmo. Desconfio que as respostas seriam muito engraçadas... Mesmo para aqueles que, defensivamente, viriam com certeza argumentar que a questão do diagnóstico clínico não é central para a qualidade da série, guardar-lhes-ia o comentário que, assim e por eles, House até podia ser um reparador de bicicletas, desde que fosse excêntrico e malcriado…

27 janeiro 2007

O GENERAL FOTOGÉNICO

Com os filmes recentes de Clint Eastwood (Flags of Our Fathers e Letters from Iwo Jima), parece ter-se reacendido algum interesse pelos acontecimentos do Teatro de Operações do Pacífico durante a Segunda Guerra Mundial. Tratou-se de uma Guerra quase à parte, onde o denominador comum com os outros acontecimentos simultâneos na Europa, no Norte de África, no Mediterrâneo e no Atlântico é bastante ténue. As fases mais decisivas desta Guerra do Pacífico travaram-se entre as Forças Armadas dos Estados Unidos e do Japão e, para a sua condução estratégica, as maiores disputas travaram-se entre os Exércitos e as Marinhas de cada um dos lados.
A grande questão estratégica que se colocava aos norte-americanos era o da rota dos locais de apoio que teriam de ser conquistados até à invasão e derrota do Japão. A Marinha e o Almirante Nimitz preferiam a rota das pequenas ilhas dispersas no meio do oceano, enquanto o Exército e o General MacArthur optavam pela das grandes ilhas (Nova Guiné, Filipinas, Formosa) existentes nas suas bordas. Enquanto na Europa a disputa era feroz, mas sobretudo política, e o Presidente Roosevelt se deixava fotografar sorridente entre os aliados Churchill e Staline, no Pacífico a disputa parecia ser técnica, mas não era menos feroz, e o mesmo Roosevelt aparecia aqui retratado, também apaziguador, entre os subordinados MacArthur e Nimitz.
A postura dos dois oficiais na fotografia de cima, até na forma como cruzam as pernas, não engana sobre qual deles seria o mais fotogénico e, por extensão, o mais preocupado com a questão das relações públicas. A fotografia de baixo, porventura a sua mais famosa, em que MacArthur se deixa fotografar com água pelo joelho, adiantando-se aos que o acompanhavam, quando desembarcavam numa praia das Filipinas é de uma sofisticação de vanguarda para aquela época, quando se pensa na promoção de um chefe militar. Sabe-se hoje que a fotografia foi encenada, numa repetição do que acontecera no dia anterior – onde MacArthur tivera verdadeiramente de andar pela água por causa do calado da Lancha de Desembarque que o trouxera.
Ainda hoje se percebe como quase todas as fotografias de MacArthur são pensadas e cuidadas, como a que encima este poste, onde usa um cachimbo de carolo de milho, um verdadeiro símbolo da América rural e que lhe granjeava uma enorme popularidade como pessoa de gostos simples e que ficou associado para sempre à sua pessoa. Simplesmente, segundo os relatos, na intimidade MacArthur preferia fumar charutos… Nos raros instantâneos que dele existem, MacArthur (à direita) torna-se quase irreconhecível na sua espontaneidade, onde não lhe falta uma ridícula risca (muito) ao lado, daquelas usadas pelos calvos na sua fase de negação…
Mas, embora Nimitz não fosse pessoalmente um amigo das encenações como o era o seu grande rival (que acabou por o suplantar em notoriedade após a rendição do Japão), o mesmo não acontecia com as forças sob o seu comando, como acontece com a imortal fotografia com os fuzileiros alçando a bandeira norte-americana no Monte Suribachi* em Iwo Jima**. A fotografia, de todos conhecida e que se tornou o símbolo da vitória norte-americana no Pacífico, senão mesmo para toda a Segunda Guerra Mundial, foi tirada a 23 de Fevereiro de 1945. O final dos combates deu-se em 26 de Março de 1945. Aquela fotografia de vitória foi tirada um mês antes do fim da batalha…
* Suribachi é a palavra japonesa para almofariz.
** O desembarque em Iwo Jima (ilha no centro do mapa) foi uma operação da responsabilidade da Marinha norte-americana sob o comando de Nimitz.

QUASE NEM SE PERCEBE COMO…

Os assuntos em destaque sucedem-se de uma forma tal que por vezes se tornam ridículos quando observados de uma forma encadeada. É que, julgando pelas aparências, se a famosa legislação de João Cravinho para o combate à corrupção ainda não foi sequer discutida nem muito menos aprovada, quase nem se percebe como se puderam conduzir as investigações sobre a dita corrupção que levaram à actual situação na Câmara Municipal de Lisboa.

Pelos vistos, e como suspeitava, não vale a pena cavar trincheiras na Assembleia da República para travar o verdadeiro combate à corrupção entre os detentores de cargos públicos. É um combate que pode ser travado com a legislação que existe, tivesse Cravinho querido travá-lo quando lhe rebentou nas mãos a castanha da Junta Autónoma das Estradas (JAE). Os párocos de outrora defendiam-se destes absurdos invocando quão insondáveis eram os desígnios do Senhor... Desconfio que haverá também aqui insondáveis desígnios… mas de uma outra origem.

26 janeiro 2007

POLÍTICOS ARMADOS




São raríssimas as ocasiões em que dirigentes políticos se deixam fotografar de armas na mão. Mesmo nos Estados Unidos, já se concluiu que é processo de campanha que não compensa. Por isso, as fotografias deste poste, Winston Churchill, enquanto Primeiro-Ministro do Reino Unido durante a Segunda Guerra Mundial (1939-45) e Agostinho Neto, enquanto dirigente do MPLA durante a Guerra Colonial (1961-74) são uma verdadeira curiosidade.

A arma que Churchill tem nas mãos (provavelmente a arma individual distribuída ao soldado que está junto a si), é uma pistola-metralhadora Thompson com o carregador de tambor (a arma ficara famosa nas mãos de Al Capone e de Eliott Ness do FBI…), e é de fabrico norte-americano. A bonomia na expressão de Churchill, pouco guerreira com o seu chapéu alto e charuto e expressão insondável, pretende transmitir uma imagem de proximidade com o britânico comum, que havia sido chamado a cumprir o serviço militar. É perceptível na forma profissional como segura a arma (apontando-a para baixo), a sua familiaridade com o manejo de armamento (Churchill tinha recebido formação como oficial em Sandhurst e participara na Guerra do Boéres e na Primeira Guerra Mundial).

A arma que Agostinho Neto segura é uma AKM, uma evolução da mundialmente famosa AK-47, mais conhecida por Kalashnikov, do nome do seu criador de nacionalidade soviética. Actualmente, em qualquer das suas versões (foi fabricada em dezenas de países) é a arma favorita dos guerrilheiros de todo o mundo, mas na época em que a fotografia foi tirada seria provavelmente a arma individual mais sofisticada que existiria no arsenal do MPLA. A ideia seria fotografar o dirigente máximo de uma organização onde predominavam intelectuais, assim, de arma na mão, para criar ânimo e sensação de proximidade junto das bases combatentes. Infelizmente, mesmo um leigo vê que Neto segura na arma como uma enxada e o efeito junto dos guerrilheiros deve ter sido contraproducente.

OS ESLAVOS OCIDENTAIS

Se o poste anterior (imediatamente abaixo) começa por nos mostrar os contornos do estado germânico no período de apogeu da expansão germânica no Leste durante o II Reich (1914), este poste começa por um outro grande império germânico, precisamente 1100 anos mais antigo: aquele que existia à data da morte de Carlos Magno em 814 e que veio a ser dividido pelos seus herdeiros em 843.

O Império de Carlos Magno tornou-se um must propagandístico durante o período da Guerra-Fria: os territórios que engloba correspondem quase escrupulosamente aos países membros da NATO mais passíveis de invasão no caso de um ataque soviético e, além disso, mostravam uma coabitação franco-alemã debaixo de uma mesma estrutura política que era uma verdadeira raridade na história europeia.

Mas repare-se como as fronteiras orientais do império carolíngio terminavam no rio Elba e mesmo as terras que hoje constituem a Áustria se situam num dos seus extremos. Para lá dessas fronteiras habitavam povos eslavos sobre quem os germânicos mostravam o mesmo tratamento desdenhoso que outrora os romanos haviam manifestado a seu respeito: admite-se que a razão da palavra inglesa para escravo (slave) seja a origem étnica dos primeiros escravos empregues pelos anglo-saxões.
Nos tempos de Carlos Magno, as tribos eslavas dominavam a Europa Central a Leste do rio Elba. Como se vê pelo mapa acima, as regiões onde hoje se localizam cidades alemãs de referência como a própria capital, Berlim, Leipzig ou Dresden eram na altura territórios controlados pelos bárbaros eslavos. Foi um intensivo (mas pouco conhecido) trabalho de colonização (e evangelização) germânica, desenvolvido a partir dos Séculos XII e XIII que integrou culturalmente os habitantes dessas regiões que são hoje alemãs.

Na região representada no mapa, onde habitavam os eslavos designados por polábios, o sucesso da aculturação parece ter sido quase total. Embora no Século XV os dialectos usados nas regiões rurais fossem quase todos de raiz eslava, actualmente existem apenas cerca de 60.000 falantes de um idioma eslavo deles descendente: o sorábio. Uma verdadeira curiosidade etnográfica. Em contrapartida, é visível pelos resultados actuais que no caso dos checos essa aculturação acabou por falhar.

Foi nestes territórios colonizados, com as populações constituídas maioritariamente por estes eslavos germanizados, que acabou por surgir o Principado do Brandenburgo e, depois, o Reino da Prússia, reputados pela sua disciplina, e que acabaram por constituir, graças a Bismarck, o núcleo central da unificação alemã em 1871. Com uma bandeira severa a preto e branco e uma águia, a Prússia sempre permaneceu como uma espécie de Alemanha ainda mais rigorosa, num pais onde os habitantes já não são muito dados a exprimir estados de alma, de antemão.
Essa especificidade voltou a ser realçada quando, entre 1945 e 1990, a Alemanha esteve dividida entre dois estados. Na República Democrática Alemã (RDA, no mapa acima - compare-se a quase coincidência com o mapa anterior...), para além das diferenças ideológicas e naquilo onde não houvesse contradição com a sua ideologia oficial obrigatória, pareceu que os seus dirigentes quiseram incorporar quase todas as características que haviam sido as do estado prussiano. A prazo, parecia haver na RDA possibilidades de cunhar uma identidade nacional própria, como hoje acontece com a Áustria.

Um dia, estando em Praga, ao ver a forma rigorosa e disciplinada como os checos (os tais que, por pouco, não chegaram a ser colonizados) se comportavam colectivamente (a subir as escadas rolantes do metropolitano, por exemplo, onde se arrumavam metodica e escrupulosamente à direita, sem dar mais um passo ou subir um degrau ou dois) dei por mim a especular, juntando o que conhecia de várias cidades alemãs (Berlim, Colónia, Munique ou Hamburgo), se não se podia dar o paradoxo que afinal os famosos rigor e disciplina germânicos se devessem a características antropológicas destes famosos eslavos ocidentais…

25 janeiro 2007

AS TERRAS DE LESTE PERDIDAS PELA ALEMANHA

O mapa de cima mostra os contornos da Alemanha em 1918 com as suas fronteiras respectivas. A Alemanha actual é composta pelas regiões assinaladas com a cor azul mais escura enquanto tudo o que aparece colorido em diferentes tons de azul celeste, grená, verde e amarelo, representam territórios perdidos por ela em 1919 (azul celeste e grená) e 1945, a grande maioria dos quais para a Polónia.
Como se pode ver nesta representação das populações dessas regiões orientais, feitas com base no recenseamento realizado em 1910 pelas autoridades alemãs, uma percentagem apreciável da população que nelas habitava era reconhecidamente polaca. Como se pode ver em mais detalhe (clicando em cima do mapa), em cada região, as cores utilizadas vão escurecendo à medida que a percentagem da população polaca vai aumentando. Os polacos predominavam nas províncias de Posen e da Prússia Ocidental e no Sul da Prússia Oriental e da Silésia.
No seguimento da derrota alemã da Primeira Guerra Mundial, as províncias dos mapas anteriores onde havia maior concentração de polacos foram cedidas pelos alemães ao novo estado polaco. No Sul da Silésia (com 60%) e no da Prússia Oriental (com mais de 90%) foram realizados plebíscitos com resultados globalmente favoráveis à opção pela Alemanha. Mesmo assim, com as novas fronteiras, a Polónia veio a obter um acesso ao mar Báltico, mas não um porto natural, porque a população da antiga cidade hanseática de Danzig (a cinzento, a oeste da Prússia Oriental) era maioritariamente alemã.

A cidade foi assim separada da Alemanha, transformada num estado autónomo sob a protecção da Sociedade das Nações (SdN), onde os polacos possuíam direitos de trânsito especiais, enquanto se encarregavam de construir na sua secção de costa uma cidade portuária a partir de um porto artificial: Gdynia. Mas a Alemanha ficara divida, o que se transformaria num dos pretextos para as reivindicações de Hitler que levaram à invasão da Polónia e à Segunda Guerra Mundial. No final da Segunda Guerra Mundial (1945) as fronteiras voltaram a ser redesenhadas mas agora associada à brutalidade dos métodos soviéticos que retraçou as fronteiras e forçou as populações a deslocarem-se de acordo com os novos traçados para evitar a existência de minorias étnicas do lado errado da fronteira que pudessem vir a ser usadas como arma política no futuro. Ainda hoje não se pode precisar quantos milhões terão sido deslocados.

Como se pode ver pelo mapa acima, a União Soviética anexou uma substancial parcela da Polónia Oriental para as juntar à Bielorrússia e à Ucrânia dando-lhe em troca os territórios alemães do Leste. Podia-se argumentar que Estaline estava a recuperar território que pertencera outrora ao Império Russo dos czares, mas entre as suas novas aquisições houve territórios que nos séculos anteriores dependeram do Império Austríaco e nunca haviam sido russos.

Em suma, Estaline pôs a Polónia (e os polacos) a rebolar umas centenas de quilómetros para ocidente. Cidades que desde há séculos eram conhecidas e famosas pelos seus nomes germânicos recuperaram as suas versões polacas, como Breslau, que se transformou em Wroclaw, e Danzig que recuperou o nome eslavo de Gdansk, futuramente célebre como local de nascimento do Solidariedade.
Em consequência, como se vê no mapa acima, a maioria dos territórios de Polónia moderna eram prussianos há 150 anos e representasse a terra e a agricultura o potencial de riqueza que tinha representado até aí (antes da Revolução Industrial), os polacos teriam todos os motivos para recear o retorno dos alemães. Mesmo assim, a riqueza carbonífera da Silésia não os deixa descansados quanto ao que poderão ser as futuras intenções alemãs… Mas nestes tempos modernos, usando o dinheiro* (e na Alemanha têm-no), um país pode conquistar outro e não usar um só soldado. Parece não haver grandes hipóteses (nem necessidade...) que tiros se troquem ao longo da linha Oder-Neisse.

* A aquisição por alemães de propriedades na Polónia e na República Checa tem condicionamentos.

TRATAR DO PROBLEMA DA CORRUPÇÃO

Este poste começa por um problema descrito aqui há uns tempos por um colega de blogosfera num seu poste, que assinalava – e se queixava, a justo título – de um restaurante na região de Lagos – não estava muito mais identificado que isso – onde o menu e a empregada não usavam outra língua que não o inglês. O cliente e autor do poste bem refilou, mas nada feito, que a mocinha não era dada à língua de Camões; nem o era o dono, entretanto aparecido, aliás. E o pedido lá acabou por ser feito num inglês muito sofrível, de que o autor do blogue se confessava, honestamente, um mau praticante. E ali estava ele a narrar, no seu blogue, um incidente tão aborrecido como são permissivas as coisas em Portugal, vejam lá!...

Assumindo as penas do narrador, perguntei-lhe porque não tinha abandonado ostensivamente o estabelecimento ou não tinha usado o seu inglês de escola para pedir o Livro de Reclamações. Que não, essas atitudes teriam incomodado as senhoras que o acompanhavam – ser obrigado a falar inglês num restaurante português não incomoda nada, apenas motiva a escrever postes… – mas que iria tratar do problema, escrevendo uma carta ao director de um jornal, denunciando aquela situação. E lá apareceu ela, a tal carta acusadora na denúncia de uma enorme ilegalidade, mas omissa quanto à identificação precisa do local.

Tê-lo-ia desiludido informá-lo que, não falando português, seria muito improvável que o dono do restaurante tivesse o hábito de comprar jornais portugueses de grande circulação? E, embora a história seja antiga, suspeito que, se entretanto o dono não tiver regressado para a sua terra, o restaurante ainda lá esteja com os mesmos hábitos, quem não gosta vá-se embora, que isso de nos queixarmos para o multar ou fechar por ter uma prática absolutamente ilegal é chato…E assim foi o problema tratado, que a sua resolução pertencerá ao que vier a seguir.

Quem ouvir a actual discussão à volta da legislação de João Cravinho contra a corrupção e nada soubesse do assunto ainda pressuporia que ela viria colmatar uma enorme lacuna legislativa que existiria nesse aspecto na ordem jurídica portuguesa. O que suspeito que não deva ser bem verdade. Mesmo a que já existia no tempo em que Cravinho foi ministro das Obras Públicas ter-lhe-ia permitido fazer outra coisa do que apenas tratar do problema da corrupção na Junta Autónoma das Estradas que o general Garcia dos Santos lhe pôs em cima da secretária…

Será sociologicamente genético da nossa parte confundir tratamento com resolução? É que – vem a propósito dado o preâmbulo – em inglês a palavra tratamento (treatment) aplica-se a doenças ou a uma qualquer informação enquanto os problemas só deixam de o ser quando são resolvidos (solved). Mas entre nós é coisa comum confundirmos os dois conceitos e consideramos os formalismos – a carta ao director ou os retoques da legislação que Cravinho agora propõe – como a própria solução. Ora, assim expresso, é evidente que nem a carta ao director afectou as regras de funcionamento do restaurante, nem, por agora, a legislação proposta por Cravinho influi no verdadeiro combate à corrupção…

O resto é conversa de chacha e fazer agora de João Cravinho um paladino desse combate é um requinte situado uns furos ainda mais abaixo nessa conversa!...

24 janeiro 2007

UMA FÁBULA DE ESOPO ou béu béu…

Há pouco, pouco tempo, havia um cachorrinho que gostava muito da dona. Parecesse-lhe que alguém os estava a importunar e era vê-lo ladrando, ladrando, ladrando, ladrando, e até rosnando. Certo dia, talvez importunada com tanto zelo, a dona mandou calar o cachorrinho que ladrava a um senhor que lhe dava troco - Senta!

O cachorrinho ficou triste mas, como era muito obediente, obedeceu. Mas começou a ficar cheio de ciúmes quando a dona deu em continuar a falar com o tal senhor a quem ele estava proibido de ladrar, sem que nenhum deles agora lhe passasse cartão. Sedento de atenção resolveu pôr-se a ladrar a uma outra senhora que parecia também ter importunado a sua dona. Que tentou responder ao cachorrinho tratando-o como se o cachorrinho não fosse um cachorrinho.

Mas a dona parece andar distraída, o que obrigou o cachorrinho a ladrar ainda com mais força para se fazer notado. E assim acaba esta fábula que, embora só tenha um bicho, também tem uma moral como as Fábulas de Esopo: por muito alto que pareçam ladrar, os cachorrinhos são sempre cachorrinhos e nunca devem deixar de ser tratados como tal, senão entusiasmam-se e levam-se a sério… A dona que lhe faça umas coceguinhas!

O QUE TERIA ACONTECIDO EM 1919…

Há quem ainda hoje não compreenda a decisão tomada pelo Alto Comando alemão de pedir um armistício aos Aliados, que lhes foi concedido em Novembro de 1918, quando o Exército alemão ainda continuava a ceder terreno, mas sem ter sido derrotado e sem que os Aliados ainda tivessem entrado em território alemão. Mas, na minha opinião, esta antecipação de um acontecimento que sabia inevitável foi uma das decisões políticas mais relevantes e inteligentes de Erich Ludendorff, o cérebro – como Vice Chefe de Estado Maior e Quartel Mestre General – por detrás da máquina de guerra imperial alemã.

Falhadas as Ofensivas alemãs do primeiro semestre de 1918, o tempo estava a trabalhar em favor dos Aliados, com o aumento da participação do Exército norte-americana na Guerra. Sabendo-se o que aconteceu na altura, é muito menos conhecido aquilo que estava previsto acontecer. Explicado com alguns exemplos e números, os americanos – que tinham entrado na Guerra em 1917 – passaram 1918 a construir as infra-estruturas logísticas em 9 portos franceses (Le Havre, Cherbourg, Brest, St. Nazaire, Les Sables d´Olonne, Rochefort, Bordéus, Bayonne e Marselha) para a recepção e expedição para as frentes de combate do material chegado dos Estados Unidos.

Traduzido em números, a capacidade de carga e transporte desses portos (apenas na parte que seria exclusivamente destinada aos norte-americanos) passou de 10.000 toneladas diárias em Abril de 1918, para 30.000 em Novembro desse ano, e estava previsto que essa capacidade tornasse a triplicar (para as 100.000 toneladas) até meados de 1919. Em efectivos, os Estados Unidos tinham 5 divisões em França em Março de 1918, que já eram 42 em Novembro, de um total que rondaria as 100 que estariam previstas colocar em França em Dezembro de 1919, o que totalizaria cerca de 3,5 milhões de homens em armas (apenas em França).
Como medida de comparação, ao terminar a guerra em Novembro de 1918, os efectivos globais dos seus principais aliados eram (em milhões) de 2,8 (França), 2,3 (Reino Unido) e 2,2 (Itália). Os da Alemanha, em princípios de desagregação e mais difíceis de estimar por isso, oscilariam entre os 5,5 e os 6 milhões. Não é difícil de prever o que teria acontecido em 1919: a participação americana na Guerra ter-se-ia demonstrado ainda mais decisiva para o seu desfecho. A decisão de Ludendorff poupou aos alemães muitas humilhações mas também foi aproveitada por franceses e britânicos para se arrogarem depois um falso estatuto de Grandes Potências em paridade com os Estados Unidos.
Do lado positivo, graças ao gesto de Ludendorff, muitas vidas terão sido naquela altura poupadas. Mas, como dizia um seu compatriota (Clausewitz), a vitória militar obtém-se quando se retira ao inimigo a vontade de combater. Ora aqui, parece ter-se ficado mais com a impressão que essa vontade foi mais cedida do que retirada. Adolf Hitler e, com ele, muitos milhões de alemães nem perceberam como haviam sido justamente derrotados e passado ao lado de uma humilhação ainda mais violenta. Em Maio de 1945, no meio das ruínas de Berlim, era visível que os vencedores daquela vez já não haviam repetido o mesmo erro político...

FERDINAND FOCH

Sentimento… isso não existe. É como optimismo, são palavras… Temos meios e é preciso pô-los em acção. Não somos mais estúpidos do que os outros. Porque não seremos igualmente bem sucedidos? Melhor, devemos procurar utilizar os nossos meios. Encontramo-los. Se não os encontrarmos, é porque procurámos mal. É preciso procurar melhor, que encontraremos; encontraremos sempre se nos esforçarmos por isso. Se isso não acontecer, é porque nos enganámos. É preciso procurar outra coisa. Nada se consegue encontrar sem dificuldade. Só se é bem sucedido agindo… A confiança? Isso tira a força! E depois fica-se sem nada. Se utilizarmos os nossos meios, eles não se perdem. Indagamos o motivo por que não resultaram, trabalhamo-los novamente, empregamo-los de outra maneira. É o que existe.

Este é um monólogo discursivo de Ferdinand Foch, recolhido - e provavelmente retocado - por um oficial do seu estado-maior mas que, mesmo assim, nos dá uma imagem muito precisa e muito interessante da sua personalidade e da sua forma de trabalhar as questões.

Ferdinand Foch, entre outras funções que desempenhou durante a Guerra, tornou-se o Generalíssimo, comandante de todas as forças aliadas* na Frente Ocidental em Março de 1918, cargo que ocupou até ao fim da Primeira Guerra Mundial, ocorrido em Novembro desse mesmo ano. No altar dos ícones militares da vitória aliada, ficou a pertencer-lhe o lugar principal: além de Marechal de França, também britânicos e polacos lhe conferiram essa distinção suprema de Marechal.

Dá que pensar como é que o inexorável desgaste dos resultados da guerra e das intrigas políticas, que desbastaram o Alto Comando francês durante os três anos e meio de guerra que precederam o apontamento de Foch, conduziu à ascensão hierárquica de uma pessoa que apenas prescreve método e perseverança como solução para a vitória final, num país que, desde Napoleão, sempre andara à procura doutros génios entre as suas chefias militares.
De facto, como que à imagem e semelhança das trincheiras cheias de lama, ratos, piolhos e corpos em putrefacção desenterrados acidentalmente pela artilharia inimiga, que acabaram por se tornar uma das suas imagens de marca, a Primeira Guerra Mundial parece ter sido uma guerra bisonha, onde se dispensaram os rasgos de audácia, imaginação e génio em prol de outras virtudes, como as de cerrar os dentes e resistir. Como no jogo de damas, mais do que vencer o inimigo directamente, a solução consistia em ficar à espera que o inimigo cometesse os erros que o levassem à derrota.

Como um bom corredor de fundo do atletismo, Foch é um excelente exemplo do chefe militar que era necessário para estas circunstâncias, daqueles que compensasse com uma enorme capacidade de resistência, a sua evidente falta de velocidade

23 janeiro 2007

A HISTÓRIA DA ANTIGUIDADE E A IDEOLOGIA DOS TEMPOS MODERNOS

Escolhi a capa de um livro de 1999, The Barbarians Speak* para ilustração de uma das correntes de opinião mais extremadas da análise histórica da Antiguidade, no que diz respeito às relações entre os habitantes do Império Romano e os bárbaros que viviam nas regiões que lhes faziam fronteira. A escola do autor do livro, Peter S. Wells, professor de Antropologia na Universidade do Minnesota, é aquela que defende que, no fundo, não haveria uma supremacia significativa dos romanos sobre os bárbaros, fosse em aspectos técnicos, económicos, políticos ou mesmo militares.

Falando especialmente sobre germanos e romanos, as relações que melhor conhece das suas pesquisas arqueológicas na Alemanha, Peter S. Wells delas extrai que não haveria uma diferença significativa nos padrões de vida de quem vivia de um e doutro lado da fronteira durante o período romano. Por consequência, e mesmo que o livro não cubra o período da queda do Império Romano no Ocidente, deduz-se que em todo esse processo histórico, não houve um significativo retrocesso civilizacional, apenas transformações profundas nas estruturas políticas com as naturais convulsões a elas associadas.

Predominante nos últimos anos do século XX, com esta tese creio que se terá ido longe demais na intenção de minorar as diferenças nos graus de desenvolvimento civilizacional dos antepassados dos povos europeus que hoje compõem a União Europeia. Por muito bizarro que hoje pareça, há 1800 anos quem vivia na Itália, Grécia, Espanha ou Portugal era, em média, muito mais sofisticado do que os rústicos da Alemanha, da Dinamarca ou da Suécia… Embora também acredite que esta realidade histórica tenha uma boa parcela de inconveniência política. Que a versão histórica mais simpática à integração europeia seja aqui protagonizada por um arqueólogo norte-americano é só um detalhe irónico…
Mas, do outro extremo do espectro reaparece agora a recuperação da versão traumática da queda de Roma, tipificada num livro como The Fall of Rome and The End of Civilization**, de 2005 e da autoria de Brian Ward-Perkins, um britânico, trabalhando em Oxford, e também com muito trabalho de arqueologia desenvolvido em Itália, sobretudo nos séculos V e VI. Dele, Brian Ward-Perkins, conclui que o período final do Império Romano, no Ocidente, se caracterizou por um retrocesso visível das condições de vida, causado pela recessão económica dos regimes de isolamento em que passaram a viver as regiões romanas, na sequência das invasões bárbaras.

Essencialmente Ward-Perkins recupera a tese que os bárbaros escaqueiraram o Império Romano, apossando-se dos territórios conquistados e, na sua rusticidade, isolaram-nos dos vastos circuitos comerciais que, envolvendo as diversas terras sob o domínio de Roma, haviam feito a prosperidade do mundo mediterrânico e suas redondezas nos séculos anteriores. Frontalmente contra as teses da Casa Comum Europeia desde a Antiguidade, esta tese também está carregada de (uma outra) ideologia ao confrontar-nos com aquilo que apresenta como as consequências do isolamento de cada região (país) e da desagregação do que retrata como o mundo globalizado da civilização romana. Enfim, é uma outra maneira de falar dos benefícios da globalização...
Como curiosidade final, refira-se que a capa do livro de Peter S. Wells corresponde a um pormenor de um quadro intitulado Les Roumains passant sous le joug**, de um pintor suíço, Charles Gleyre (1806-1874), pintado em 1858 e representado acima. Imperceptível na capa do livro, mas visível nas reproduções do quadro, encontram-se pelo chão as águias imperiais das legiões derrotadas. Naquele caso e naquela época, a referência mais óbvia era às águias imperiais napoleónicas… Como se vê, o recurso à simbologia da Antiguidade para as disputas ideológicas da modernidade é prática antiga…

* Falam os bárbaros. ** Já publicado (ainda bem) na versão portuguesa em 2006 pela Alêtheia: A Queda de Roma e o Fim da Civilização. *** Os romanos passando sob o jugo.

22 janeiro 2007

A JANELA INQUEBRÁVEL

A empresa tinha acabado de mudar os seus escritórios para dois pisos altos de um edifício novo de arquitectura arrojada. Entre as inovações, contavam-se umas amplas janelas do chão ao tecto, onde o pessoal, que trabalhava num open space central com a circulação a fazer-se pelo exterior, tinha medo de se abeirar, quer fosse pelas vertigens (causa mais provável), quer fosse pelo receio de que, tropeçando, o vidro se partisse e se caísse de um enésimo andar (causa oficialmente invocada).

Para resolver os problemas dos receios do pessoal quanto à segurança dos materiais foi convocada uma sessão com um engenheiro encarregado de esclarecer as dúvidas do pessoal. Ora os engenheiros não são geralmente pessoas dadas a grandes exercícios de oratória e este, chegada a hora do início da sessão, equipou-se de joelheiras, cotoveleiras e capacete, pôs-se num extremo do andar, atravessou-o a correr com a toda a velocidade em direcção a uma das janelas do lado oposto, onde chocou com estrondo e com toda a força…

- Senhoras e senhores, a sessão está concluída… Infelizmente, mesmo esta imaginativa demonstração não chegou para resolver o problema de fundo: o inconfessável problema das vertigens e a empresa acabou por mudar de escritórios uns anos mais tarde… Desta história há duas facetas que vale a pena destacar: a eficácia de uma demonstração directa quando bem feita; embora possa acabar por se vir a revelar ineficaz porque não se está a lidar com a verdadeira causa do problema.

Falando de um outro assunto, vale a pena realçar a pertinência de um poste relativo ao modismo que se tem instalado na blogosfera de se escrever a propósito de tudo o que está na berra, sintetizado (com felicidade) nas expressões pensamento instantâneo ou opinião pronta a servir. Concorda-se com o conteúdo por que se nota, de facto, que parece que se instalou em muitos blogues uma certa propensão para se escrever de forma imediatista – e simplista – sobre quase tudo.

Só que depois, já no final do texto e entre parêntesis, há uma espécie de aditamento de desagravo, sobre a incoerência de como a mesma atitude ser fortemente censurada, quando é feita por jornalistas na imprensa tradicional. E aí a minha concordância esvai-se, porque não acompanho a analogia e dali parece insinuar-se que será o despeito ou a inveja que motivará essa crítica. Ora, eu não pago nada para ler umas trivialidades num blogue qualquer sobre o QREN enquanto pago as que leio no jornal (que devem ser) escritas por profissionais…

Acredito que seja embaraçoso para a classe que, utilizando o mesmo suporte de expressão (o blogue) se possa à vezes concluir que o que foi produzido por amadores tem mais categoria do que o produto de profissionais formados. E, além disso, pessoalmente, creio que, nesses assuntos, a retórica não sustentada nem impressiona… No caso da parte final desse poste, onde se fala do jornalismo como actividade interpretativa, convém esclarecer que o bónus da interpretação estará no leitor que concederá (ou não…) ao jornalista a categoria para aceitar a que foi feita…

Pela positiva, suponho que a melhor solução para os jornalistas estará em fazer como o engenheiro desta história, que demonstrou na prática a resistência da janela, neste caso com a demonstração da qualidade literária e de conteúdos do material que eles vão produzindo… Ou então, noutra hipótese, nem isso será solução, porque a verdadeira causa do problema é outra e não há demonstração que lhe valha: os blogues prenunciam a extinção dos jornalistas enquanto profissão especializada…

21 janeiro 2007

A COR DE SALMÃO

Um pintor da construção civil estava a contar a um amigo as dificuldades por que tinha passado no seu último trabalho, em casa de uma cliente muito exigente:

- …E depois houve uma imensa dificuldade em encontrar a cor certa que a cliente queria para a sala. Tive que ir comprar não sei quantas latas de tinta para arranjar o tom salmão certo que ela queria para a sala. Não conseguia arranjar a mistura certa que desse um tom igual ao de uma amostra que ela tinha numa pequena cartolina. Depois a mãe ligou-lhe, a cliente saiu da sala, esteve à conversa com a mãe mais de uma hora e quando voltou o problema já estava resolvido…
- A mãe convenceu-a a ser mais razoável?
- Não, aproveitei o intervalo para lhe pintar a amostra com a cor da mistura que já tinha obtido…

E talvez haja muitas outras questões em que o que realmente muda é apenas a nossa percepção sobre elas. Nos casos da administração da Justiça, onde o padrão do passado parecia ser o do silêncio majestático (e antipático…), apenas furado pelas intervenções infelizes dos sindicalistas do sector, parece que há mudanças. Entre outros indícios, o Procurador-Geral admite numa audição de uma Comissão da Assembleia da Republica que não possui solução nenhuma para o segredo da justiça, porque ele será sempre violado. Outro, é o do tratamento subsequente que está a ser dado ao caso do sargento condenado recentemente a seis anos de prisão por sequestro, disponibilizando o acórdão. E parece haver mais...

E, sinceramente, só posso encarar com agrado o fim de alguma hipocrisia (quanto ao segredo de justiça) e a possibilidade de, dispondo das fontes originais da informação (o acórdão), poder chegar autonomamente às minhas conclusões sobre um qualquer assunto em discussão. Provavelmente, como a cliente do pintor, a justiça não passou a funcionar melhor em Portugal por isso e apenas me pintaram a amostra, mas eu fiquei contente porque me pareceu que me passaram a prestar mais atenção enquanto cidadão… O que eu não percebo é como esta diversificação das fontes de informação pode deixar alguém tão furibundo… e pelo tom apaixonado do teor do poste, Furibunda com F Maiúsculo*!
* É que o comunicado do sindicato dos juízes é a defesa da decisão judicial baseada no acórdão, a reequilibrar uma história de fadas que havia circulado nos dias anteriores na comunicação social e na blogosfera, com gente muito boa e gente muito má, onde um dos bons foi condenado por três juízes tolos...

O HUMOR GLOBALIZADO?

Para quem se lembre, no filme Lost in Translation*, um dos momentos mais penosos para Bill Murray foi o da sua presença num programa humorístico japonês. Embora já me tenha apercebido que os japoneses podem ter divertimentos bizarros, não conheço outros programas humorísticos seus para poder aferir que parte do tal programa ficcionado de TV onde Murray compareceu seria credível e que parte seria propositadamente caricatural.

Já posso contudo especular quanto as expressões de Murray não seriam muito diferentes das daquele programa, se ele fosse hipoteticamente convidado a aparecer, acompanhado de intérprete, no concurso da RTP O Preço Certo apresentado por Fernando Mendes, um ícone do genuíno humor português, ou mesmo naquela paródia ao concurso feita recentemente pelos Gato Fedorento. Mas, em contrapartida, fica-me a suspeita que poucas gargalhadas genuínas daquela assistência se ouviriam se Jerry Seinfeld lá fosse actuar… mesmo de tradutor ao lado.

* Já me ocorreu que a tradução do título do filme para a versão portuguesa (O Amor é um Lugar Estranho) contivesse, ela mesma, uma espécie de mensagem cabalística do que representa, em concreto, falhar completamente uma tradução.

20 janeiro 2007

O TREINO CONDICIONADO E O TRABALHO ESPECÍFICO


Eu suspeito que poderei começar a tornar-me repetitivo nesta minha atitude de, volta por outra, gozar com aquilo que os jornalistas especializados costumam designar eufemística e pomposamente por fenómeno desportivo – que não passa afinal do velho pontapé na bola só que agora com mais todas as indústrias dele subsidiárias. Mas reconheça-se que apenas reajo ao que se vai ouvindo.

É que o fenómeno desportivo já descambou, em dias em que não há nada para dizer relativamente ao espectáculo do jogo em si, na selecção de assuntos a tratar que são completamente desinteressantes, como é o caso do acompanhamento dos treinos dos jogadores com a evolução das respectivas lesões. Em matéria de audiências, suspeito que o interesse pelo tendão de Aquiles do Sokota seja despiciendo…

Sobretudo porque a matéria em causa é sempre tratada da mesma forma inimaginativa, com as mesmas expressões de sempre, ocas, onde Manu treina condicionado e Leo realiza trabalho específico… O que condiciona o treino do Manu e que especificidade tem o trabalho do Leo? Também suspeito que ninguém quer saber… Enfim, é um chorrilho de banalidades condicionadas complementado por outro de trivialidades específicas

ANTONINO O PIO

Titus Aurelius Fulvus Boionius Arrius Antoninus nasceu em 86, perto de Roma, de uma família que era originária do Sul da Gália, onde se misturariam ascendências latinas e gaulesas. Mas convém frisar que a cidade de origem da família (Nemausus, a actual Nîmes) já era romana há mais de 200 anos quando Antonino nasceu. A família devia ser muito rica e, para facilitar a carreira política do avô de Antonino, Titus Aurelius Fulvus, transferiram grande parte dos seus interesses para Itália, onde adquiriram as terras que conferiam ao proprietário a dignidade social para cargos políticos de relevo.

Deve ter sido um carácter digno de conhecer, este avô de Antonino, vindo da província. Foi eleito Cônsul* e supõe-se que se tenha tornado um dos potentados da indústria de telhas da região de Roma... A culminar a ascensão social, fez uma aliança com um dos seus colegas de Senado, Arrius Antoninus, que também singrara sob o regime dos Flávios** onde também tinha chegado a ser eleito Cônsul. O seu único filho e homónimo, Titus Aurelius Fulvus júnior, casou com a única filha de Arrius Antoninus, Arria Fadilha. Dessa união veio a nascer o futuro imperador.

O Titus Aurelius Fulvus mais novo, muito provavelmente com o patrocínio do pai e do sogro, também estava muito bem lançado numa carreira política (já havia sido eleito Cônsul em 89, quando o seu filho tinha 3 anos) quando veio a morrer inesperadamente, muito pouco tempo depois. Antonino veio a ser criado sob a supervisão dos dois avôs, as duas personalidades fortes que esta narrativa deixa antever, como neto único de dois filhos únicos***. Quase nada se sabe sobre a sua infância e juventude. Antonino – que por essa altura seria aquilo que hoje se designa por um excelente partido - ter-se-á casado entre os anos de 110 e 115.

A noiva, Annia Galeria Faustina, a antiga (para a distinguir de uma filha com o mesmo nome), era filha de um outro ex-Cônsul, Marcus Annius Verus, de fortuna arrecadada na Andaluzia na produção de azeite, e de Rupilia Faustina, outra andaluza, parente próxima do imperador Trajano. Além de prodigiosamente rico e de ser um político destacado, o jovem Antonino acabara de entrar no círculo íntimo da família imperial. Deste casamento resultaram dois filhos, um filho que acabou por morrer na infância e a filha, homónima da mãe, que veio a casar mais tarde com o imperador Marco Aurélio, o sucessor de Antonino.

O imperador Adriano sucede a Trajano em 117, e a proximidade familiar do casal ao trono aumenta, pois Faustina é sobrinha da nova imperatriz, Sabina. Mas o que se sabe da carreira de Antonino durante os 21 anos do reinado do antecessor, é que foi um percurso discreto (Cônsul, apesar de tudo, em 120...), torna difícil enquadrar a escolha subsequente de Adriano. Sem descendência, aos 60 anos, o imperador nomeou um senador, Lucius Aelius, como seu herdeiro, uma escolha que, controversa na época, nunca mais deixou de o ser – há quem defenda que esse herdeiro era filho natural de Adriano. Mas o herdeiro acabou por morrer antes do antecessor.

É como recurso que Adriano acaba por optar por Antonino, que lhe é apenas 10 anos mais novo, condicionando-lhe as escolhas dos seus sucessores (Marco Aurélio de 17 anos e Lúcio Vero de 8) – desejo que Antonino até acabou por cumprir… Menos de cinco meses depois da decisão, Adriano morria. E é sob o reinado deste imperador que o próprio antecessor considerava de transição e que acabou por se prolongar por 23 anos, que a grande maioria dos historiadores da actualidade consideram que se atingiu o apogeu do Império Romano…

O período de Antonino é o de uma prosperidade suíça, por analogia com a daquele país, onde raramente acontece algo que mereça destaque nas notícias internacionais. Factores que não se podem atribuir à boa ou má actuação dos governantes, como as perturbações nas fronteiras quase não existiram. Entre 141 e 143 houve-as na Grã-Bretanha, que deram origem, aliás, a um muro com o seu nome, situado a norte do do seu antecessor (muito mais famoso) entre 142-144, houve uma revolta no Egipto, em 145, perturbações em Marrocos e na Argélia e em 156-157 na Roménia. Pouca coisa, a comparar com os reinados anteriores, trocados, a comparar com os seguintes.

Antonino morreu em Março de 161, com 74 anos, uma idade provecta, mas não tão rara quanto isso entre as elites romanas****. As descrições pessoais são feitas de uma forma tal que se descartam automaticamente por suspeita de se tratar de panegíricos: Duma beleza marcante, tinha um carácter agradável e numerosos talentos. Aristocrata em todos os seus poros, todo o seu comportamento demonstrava uma enorme dignidade. Orador de valor, sábio emérito, proprietário esclarecido, era uma pessoa sóbria, trabalhadora amável, generosa e respeitadora dos direitos alheios. (História Augusta) A contrastar com este encadeado de elogios, apenas as informações - doutra fonte - que tinha frequentes enxaquecas e um apetite sexual notável.

Conto-me entre aqueles que, na História de Portugal, entende o cognome do rei Manuel I (O Venturoso) pela sua faceta irónica, a de alguém que calhou ser a pessoa certa e pertencer à geração certa para vir ocupar inesperadamente o lugar de destaque no período (1495-1521) que é considerado o do apogeu da História Portuguesa. Se evoco este exemplo mais familiar para os leitores é para o comparar ao de Antonino o Pio, onde penso que se tenha passado algo de muito semelhante, mas com a História de Roma. E o ensinamento que o julgamento do desempenho dos protagonistas da História não deve ser feito sem que se compreenda as circunstâncias em que o fizeram.

* Cada Cônsul (havia sempre dois) era eleito por um ano e, embora nesta época já não dispusesse de nenhum poder efectivo, ainda era considerado teoricamente o cargo supremo da hierarquia romana. Por exemplo, a legislação era promulgada em nome dos dois cônsules em exercício e não do imperador...
** Dinastia de imperadores romanos: Vespasiano (69-79), Tito (79-81) e Domiciano (81-96).
*** Embora a sua mãe tenha voltado a casar e tido uma filha.
**** Augusto morreu com 76 anos e Tibério com 78.

19 janeiro 2007

AS GRANDES DATAS DA HISTÓRIA…

Quem gosta das datas da História, deve ter fixado que o fim da Antiguidade e o inicio da Idade Média se deu em 476, quando da deposição do último imperador do Ocidente, com o fim do domínio romano, enquanto que em 1453, a queda de Constantinopla perante os turcos provocou o fim do Império Romano do Oriente que marcou o fim da Idade Média e o inicio do Renascimento.
Para eles, será uma surpresa que depois de 476 ainda perdurou no Ocidente, no norte da França para ser mais preciso, um estado que os historiadores intitulam por Domínio de Soissons que, dirigido pelo Dux Syagrius, era o último vestígio de território que ainda se reclamava do estatuto de província romana com a capital na cidade do mesmo nome. Clóvis, rei dos francos, derrotou Syagrius em 486, dez anos depois da data mítica e tranformou a cidade na capital do seu reino, o embrião do futuro estado francês.

Poderá ter uma outra surpresa ao descobrir que, mesmo depois da conquista de Constantinopla pelos turcos e da morte em combate de Constantino XI em 1453, os imperadores João IV Comnenos (1429-59) e David Comnenos (1459-61) ainda continuaram a fazer viver o ideal do velho Império Romano de religião ortodoxa e cultura grega na cidade de Trebizonda (actual Trabzon) na costa nordeste da Turquia, sede do Império do mesmo nome. Os turcos acabaram com este duplicado oriental de Constantinopla em 1461.

SOBRE A DISCORDÂNCIA…

Entre os textos mais significativos que li esta semana, conta-se um artigo publicado no LA Times, assinado por Niall Ferguson, onde o autor preconiza o envio de capacetes azuis para o Iraque, solução com a qual discordo. Poderia desenvolver aqui as razões pelas quais discordo de Ferguson mas, empregando a expressão de José Pacheco Pereira que os Gato Fedorento muito ajudaram a popularizar: essa não é questão.

Eu tenho um grande respeito pelo trabalho produzido por Niall Ferguson. Creio que já li a parte mais significativa da sua bibliografia. Devido à sua projecção e reconhecimento, considero-o um dos historiadores mais significativos desta geração – tem 42 anos. E, contudo, no artigo a que me referi, considero que está redondamente enganado. Gostaria de aproveitar este exemplo para deixar expressa esta distinção entre o que é apreço intelectual por alguém e a atitude de ter uma posição crítica sobre tudo o que essa mesma pessoa produz intelectualmente. São coisas que aqui pela blogosfera, às vezes se confundem.

AINDA A VACINA…

No seguimento de um poste meu do passado dia 16, compete-me chamar a atenção para uma adenda que hoje publiquei respeitante a um dos aspectos engraçados em que parece que a inexorável globalização tem dias mais inexoráveis e outros menos…

AS BOAS BIOGRAFIAS DE IMPERADORES ROMANOS

Entre as grandes biografias ficcionadas de imperadores romanos que foram publicadas ao longo do século passado, o escritor britânico Robert Graves escreveu, Eu, Cláudio, em 1934, a francesa Marguerite Yourcenar publicou as suas Memórias de Adriano em 1951 e o norte-americano Gore Vidal produziu Juliano em 1962. A estrutura usada em cada um deles assemelha-se: a partir de um diário narra-se a vida do biografado, que está ricamente documentada, preenchendo-se os detalhes desconhecidos de acordo com a personalidade que o escritor pretendeu dar ao retratado. E aí se esgotam as semelhanças entre as obras.

O Imperador Cláudio (10 a.C. – 54 d.C.) reinou de 41 a 54, enquanto Adriano (76 - 138), foi Imperador de 117 a 138 e finalmente Juliano (331 - 363), governou o Império entre 361 e 363. Medeia um século de diferença entre o primeiro e o segundo imperador e dois entre o segundo e o terceiro e, para além disso, os autores eram de gerações distintas, os livros foram escritos em décadas espaçadas, para não adicionar ainda a questão das nacionalidades diferentes de cada um dos escritores. Quanto à profundidade de qualquer análise que possa fazer sobra estas obras estará, naturalmente, condicionada pelo facto de a fazer sintética num blogue.

Quanto a Eu, Cláudio, Graves têm a infelicidade de ter de trabalhar muito baseado numa obra do século seguinte ao dos acontecimentos, da autoria de um escritor chamado Suetónio (Os Doze Césares), cheia de pormenores preciosos para a biografia (os tiques e a gaguez de Cláudio, por exemplo) mas cujo resto da narrativa dá uma abordagem aos problemas dos imperadores e do império tão profundos quanto aqueles que poderíamos extrair da actual situação politica de Espanha a partir da leitura da ¡Hola!... mas em escabroso! E o seu Cláudio e sobretudo todos os que evoluem à volta dele sofrem por causa disso.

Acredito em quem considera que Memórias de Adriano – de longe, o mais aclamado dos três livros - seja o melhor deles do ponto de vista literário. Mas, do que conheço, também tenho poucas dúvidas em considerá-lo o menos credível dos três quanto à configuração daquilo que se conhece historicamente da personalidade do biografado. Parafraseando uma crítica cáustica a uma das obras mais conhecidas de Winston Churchill*, aqui pode forçar-se um pouco a ironia, dizendo que Yourcenar inventou uma personagem de um patrício poderoso da Antiguidade, que situou no século II da nossa era e a quem decidiu dar o nome de Adriano...

O Juliano de Vidal é, de longe (e injustamente, na minha opinião), a obra menos conhecida e considerada do conjunto. Juliano foi o imperador que, no século IV, tentou reavivar os cultos ancestrais por oposição ao cristianismo que havia sido a religião da corte durante os 50 anos anteriores. Com uma história tão interessante por base, a crítica mais substancial que lhe posso apontar é a de esquecer quanto de conservador e retrógrado haveria no processo de retorno às práticas religiosas ancestrais. Ora o Juliano de Vidal quase parece um revolucionário de época, tipo James Dean ou Che Guevara
Feitas as críticas, mesmo contundentes, as três são obras globalmente excelentes, do que melhor pode haver no trabalho apurado de um escritor ao levar o leitor para um ambiente que não lhe é familiar e, tornando-o credível, ali fazer evoluir as suas personagens, embora espartilhado pelo que a História deles conhece. Quando agora parece estarmos a assistir a uma moda de romances históricos (incluindo sobre a Antiguidade), nunca é demais dar destaque ás obras que devem servir de referência ao leitor, pelo seu trabalho de pesquisa e pela sua qualidade literária.

Há uns tempos passou uma mini série na televisão (de ficção) dedicada a Atila, o Huno: os soldados romanos de meados do século V estavam vestidos e equipados como no tempo de César, cinco séculos antes… Outro dia, ofereceram-me um livro chamado A Última Legião. Depois descobri que o autor queria convencer-me que a acção se passaria em 476, data da queda do Império Romano do Ocidente, e que tal legião era o último vestígio de poder militar de Roma. Alguns livros informá-lo-iam que, em 476, o conceito de legião já estaria caduco há 200 anos… Ontem, descobri que John Boorman** se prepara para ser o realizador de uma versão cinematográfica de Memórias de Adriano. Promete…

Nestas ocasiões convém ler (ou reler) o que é bom, para melhor distinguir do que é sofrível ou mesmo mau…

* Winston resolveu escrever um livro enorme (6 volumes!) sobre a sua pessoa e quando chegou a altura de lhe dar um título chamou-lhe A Segunda Guerra Mundial!…

** A filmografia do realizador está disponível na ligação ao IMDB.