26 outubro 2006

O DÉFICE TARIFÁRIO


Confesso que, tendo a questão já sido levantada noutro blogue com toda a propriedade, aguardei uma resposta que eventualmente esclarecesse directamente o autor da questão e me esclarecesse indirectamente a mim, qual o conceito subjacente e qual a propriedade do emprego da expressão défice tarifário quando aplicado aos preços ao consumidor da electricidade da EDP, sabendo que a referida empresa é lucrativa.

Como aconteceu também com o Revisão da Matéria, as explicações televisivas do Prós e Contras da RTP deixaram-me praticamente na mesma, como quem vê outrém repartir consciensiosamente um baralho para apurar no fim que lá continuam 52 cartas, 4 naipes e 4 reis, damas, valetes, etc. cada um de seu naipe. Ou seja, faltou a resposta para a pergunta: onde é que se faz sentir o défice?

Terá sido por deformação académica que, depois de tanto esperar, me virei para o Relatório e Contas de EDP de 2005, disponível aqui e, sem me intimidar com as suas 174 páginas, me pus à procura de uma eventual resposta para a tal questão do défice tarifário. E, conforme já esperava, segundo o que já havia lido e ouvido, encontrei uma EDP lucrativa em 2005 com um resultado líquido de 1.075 milhões de euros (p.167).

No entanto, sendo a EDP uma empresa que se dedica a múltiplas actividades, poderá acontecer que este resultado final resulte da junção de actividades lucrativas com outras deficitárias o que poderia explicar a existência do tal défice tarifário. Felizmente, logo na página 4 do Relatório, existe uma apresentação desdobrada das actividades da EDP, quer pelo seu volume de negócios, quer pelos resultados líquidos.

Vale a pena analisar o que ela contém, que resumi para um quadro que encima este poste referentes a um Volume de Negócios Global da empresa de 9.677 milhões de euros e para Resultados Líquidos de 1.072 milhões. Os números do quadro estão também expressos em milhões de euros. Só existem duas actividades deficitárias: a da Comercialização, com um prejuízo de 13,5% em relação ao seu Volume de Negócios e a das Telecomunicações onde essa percentagem desse índice sobe para 42,4%.

Concentrando-nos nas actividades e sendo eu um leigo neste sector, ainda pensei que o défice tarifário ali estivesse evidenciado na actividade da comercialização, que se mostra deficitária, o que justificaria o tal aumento médio de 15% nas tarifas de consumo doméstico. Mas não. Como se deduz pela página 5 e pelo número de clientes (5,9 milhões em Portugal e 0,6 em Espanha) os consumidores domésticos afinal aparecem na rubrica Distribuição.

E curiosamente, cerca de 2/3 dos 30.000 clientes da tal actividade deficitária de comercialização são até espanhóis. Excluindo, por razões de semântica óbvia, a actividade das telecomunicações das causas para a existência do tal défice tarifário, assumo a minha enorme dificuldade em seguir o raciocínio que esteve por detrás das declarações da semana passada do tal secretário-de-estado-que-confessa-ter-dias-infelizes, atribuindo aos consumidores o ónus do tal défice.

A minha dificuldade parece-me legítima porque fui procurar as razões para tal num documento que a EDP torna público e, como tal, pensado para facilitar a compreensão de terceiros. Juro não ter escrutinado a fundo todas as 174 páginas do dito mas asseguro não ser nada fácil encontrar algo que justifique o tal défice tarifário - que admito possa lá estar... Pelo contrário, encontrei dados que me levaram a concluir que os aumentos previstos de 15% para a actividade de distribuição, em função dos resultados da conta de exploração de 2005, são absurdamente excessivos.

Eu até compreendo que se possa falar de um défice tarifário quando se fala de empresas como a CP. É um caso em que se pode até ironizar, afirmando que, com as actuais tarifas ferroviárias, só com o tráfego de passageiros ao nível de um Japão é que as contas da CP estarão algum dia equilibradas… Agora, para este caso da EDP, recorrer a essa mesma expressão… Há uma prática económica, que nem tem direito a teoria e que se chama dá sempre jeito aumentar os preços quando se pode.

É por isso que os preços do café numa esplanada algarvia são sempre mais altos no Verão do que no Inverno. Só que os proprietários dos cafés algarvios, dominando muito bem a técnica, não precisam de inventar designações tecnocráticas para a praticar…

3 comentários:

  1. Só se compreende se o relatório da EDP for da família dos da "Enron"...
    Será que a "Arthur Andersen" se transferiu e nós não sabemos?

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  2. Caro a.teixeira,
    Isto é "serviço público". A Fátima Campos Ferreira devia passar por aqui para perceber o que é "fazer o trabalho de casa" em relação a um debate.
    Pelos números e informação apresentada, confirmo então aquilo em que tenho vindo a bater há algum tempo: não há "défice tarifário". É tudo uma patranha que a maior parte das pessoas engole pacificamente, sem sequer se questionar. Não é estranho o silêncio dos "grandes blogues" em relação a esta matéria?

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  3. Caro el ranys:

    Um duplo agradecimento: pelo comentário e pelos postes que estiveram na origem deste meu e que mereceriam uma resposta. Em rigor, continuo sem poder ter uma certeza se há ou não défice tarifário. Sei é que ele não me aparece devidamente evidenciado da publicação anual mais importante da EDP e as conclusões que dali extraí depois de a ler foram até de sentido contrário.

    O que parece conclusivo é que há muitos autores entre aquilo que designa por “grandes blogues” – ainda no dia 24 era Vital Moreira empregava mais uma vez a fatídica expressão “défice tarifário” no Causa Nossa… – que parecem utilizar os termos e as expressões técnicas com uma facilidade e superficialidade tal que se percebe que só pode nascer da ignorância. Quase todo o resto parece ser disputa e agenda política…

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