19 setembro 2006

UMA ESCALA DE MOHS PARA AS RELIGIÕES – III

Catedral de Santa Sofia
Grande Mesquita

Longe estava eu de adivinhar como, ao guardar para uma terceira parte a análise da dureza relativa entre o Cristianismo e o Islão, a lição de Bento XVI proferida numa universidade alemã poderia voltar a reavivar incidentalmente a animosidade entre as duas religiões, sinal claro que a disputa entre elas ainda se encontra viva, pelo menos para suas correntes mais radicais.

É sempre desaconselhável fazer uma análise comparativa entre Cristianismo e Islão enquanto grassa essa discórdia, não porque haja a pretensão que quaisquer considerações aqui feitas tenham algum efeito nela, longe vá a petulância, mas porque o autor não pode deixar de se deixar influenciar pela animosidade que se verifica existir em qualquer dos dois lados.

Talvez por isso, este terceiro post seja mais pictórico do que os anteriores, baseando-se as explicações em dois grandes monumentos que considero, à sua maneira, simbólicos do que tem sido a disputa, sobretudo à volta do Mediterrâneo, entre o Cristianismo e o Islão: trata-se da Grande Mesquita de Córdoba e da Catedral de Santa Sofia em Istambul.

Ambas oferecem hoje serviços religiosos de uma fé diferente daqueles que dirigiram os trabalhos para a sua construção. A Grande Mesquita, que foi a sede do Califado de Córdoba tornou-se na Sé Catedral dessa mesma diocese e a Catedral de Santa Sofia, que foi a sede do Patriarca Ortodoxo de Constantinopla tornou-se na Grande Mesquita de outro Califa, o Sultão.

Garantidamente, nenhuma destas mudanças aconteceu pacificamente, pelo desaparecimento progressivo dos crentes que seguissem os serviços religiosos… Analisar durezas relativas das duas religiões na tal Escala de Mohs torna-se difícil, senão impossível, porque na História de 1400 anos de confronto entre as duas, é preciso escolher com pinças épocas e locais em que as duas puderam conviver pacificamente.

Por causa dessa mesma disputa ideológica, que parece mais actual do que nunca, há algumas ideias que se pretenderam passar para a história que talvez não tenham correspondido à realidade. Para dar apenas dois exemplos, de cada um dos lados, explique-se em detalhe que a argumentação que os conquistadores muçulmanos não procediam a conversões forçadas de cristãos e judeus é apenas uma parcela da verdade.

É que se esquece frequentemente de mencionar que o regime fiscal sob o Islão era muito mais desfavorável para os não muçulmanos, e por isso, na prática, havia que se pagar para professar uma religião diferente. Claro que isto produziu conversos a um ritmo muito apreciável que, ainda por cima, não se podiam arrepender, por que a pena prevista no Islão para a apostasia da fé é a morte.

Em contrapartida, as narrativas simpáticas à parte cristã omitem a facilidade com que a maioria das elites das áreas conquistadas se converteram ao Islão, esquecendo o fervor da sua fé cristã anterior. Como acontecia no caso romano, os relatos históricos onde se empregam os novos nomes arabizados escondem uma outra realidade genética, onde antigos e novos senhores se misturaram e poucos se refugiaram nas montanhas…

Mas estes são exemplos de episódios passados nos primeiros três ou quatro séculos do Islão, quando este se encontra pujante de força. Por volta do ano 1000 já o Cristianismo parecia sentir-se tão confiante que pensava em regressar a Jerusalém, o que fez, pela conquista militar – com haveria de ser? - em 1099, num domínio da cidade que perdurou até 1187 e uma estadia política na região até 1291.

Aquela reconquista da Terra Santa pelos cristãos pode ser vista como um episódio percursor, embora prematuro, da capacidade do Cristianismo projectar o seu poder à distância, como veio depois a acontecer depois com os Descobrimentos e que é percebido pelo Islão, desde aí, como uma das mais poderosas ameaças que sobre si incide, vide o empenho colocado na luta contra Israel.

Mas, enquanto isso e mesmo depois disso, como se se tratasse de uma espécie de gigantesca porta rotativa à volta do Mediterrâneo, o Cristianismo veio a ganhar no Ocidente – na Península Ibérica – o que estava a perder no Oriente – na Ásia Menor – para o Islão. Duas datas do século XV, 1453 e 1492 simbolizam o fim desse ciclo nos dois locais, com a conquista de Constantinopla e de Granada.

Depois dessas datas e na continuação dessas mesmas conquistas é defensável que o Islão demonstrou alguma vantagem marginal ao cativar nos Balcãs albaneses e bósnios para a sua fé, enquanto portugueses, espanhóis ou franceses nada podem apresentar de comparável entre as populações do Norte de África. Mas são pormenores de minorias que tornam disparatadas tanto a expressão Balcãs muçulmanos como Magreb cristão

Em suma, o Islão superiorizou-se ao Cristianismo até ao ano 1000, houve uma disputa taco a taco até ao fim da Idade Média, a fronteira geográfica das duas religiões está basicamente estabilizada a partir daí. Depois da Idade Média, as sociedades do Cristianismo tiveram outras histórias para as quais o Islão não teve qualquer importância nem relevância: a Reforma, a Revolução francesa, etc.

Vale a pena terminar como se começou: regressando aqueles dois grandes monumentos onde, depois da sua conquista, tudo foi feito para lhes alterar as características em prol da nova fé que os havia conquistado. Será um apelo mudo ao pacifismo o facto de ser ainda hoje perceptível para qualquer visitante, maugrado as transformações, que a alma dos dois monumentos pertence indiscutivelmente à fé que os viu nascer?

4 comentários:

  1. Aqui está a tão aguardada conclusão! Como eu bem antecipei, sem uma hierarquia clara entre islamismo e cristianismo... porque como tu (muito bem) dizes, a história de ambas as fés estão de tal modo embrenhadas uma na outra que se torna impossível perceber com clareza "quem risca quem". Portanto, voltando ao "leit motiv" da tua saga mohsiana, presumo que tomarás como boa a minha proposta de colocar, no patamar mais "macio", o budismo, e no seguinte todas as outras?
    À parte esta pergunta que te deixo, parabéns pelos textos, que tornam quase um pormenor a própria questão que esteve na sua génese. É sem dúvida uma abordagem fresca (e, muito importante, sem preconceitos) à interligação das Histórias das várias religiões.

    PS - Já agora, estão previstas "franchises" desta telenovela para outras realidades?

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  2. Antes de tudo queria manifestar os meus maiores agradecimentos pela apreciação e pelo entusiasmo constantes do comentário!

    Como confessei no próprio texto foi deliberadamente e pelas causas que indiquei que atrasei esta terceira parte. Tivesse eu procurado criar um suspense deliberado para aguçar a curiosidade - tipo novela - e a coisa não teria saído tão bem...

    As conclusões a tirar quanto à dureza actual das grandes religiões são precisamente essas: três mais duras com uma mais lá para trás.

    O problema é que a realidade da grande disputa global que se trava hoje usa uma data de outros componentes para além dos religiosos.

    Por exemplo, Moscovo e a URSS travaram a disputa da guerra-fria com a "religião" de não ter religião (claro que há os maldosos que sustentam que o leninismo era - é - uma religião...)

    Sobre a intenção de extender este "franchise" para outras realidades vale a pena frisar que pretendo deixar ideias da forma como concebo que se distribuem, se relacionam e evoluíram e evoluem os vários pólos de poder do Mundo.

    Fazê-lo, porque feito como hobby, é um prazer. Fazê-lo na blogosfera com incentivos torna-se um prazer acrescido.

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  3. "O problema é que a realidade da grande disputa global que se trava hoje usa uma data de outros componentes para além dos religiosos."
    Plenamente de acordo, daí a dificuldade da tua análise: normalmente, a disputa religiosa usa aliados mais ou menos perigosos, do messianismo de Bush à agressão pura e simples (expansão islâmica nos sécs. VII-XII, Cruzadas...).
    Quanto ao resto... virei sempre que possível aqui ler o que de novo houver, comentar, criticar (se for caso disso), incentivar.
    Se tiveres tempo vai passando pelo Altermundo, apesar de não ser tão interessante como o que aqui vais deixando talvez não seja totalmente de deitar fora...

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  4. O encanto da blogosfera é que o interessante tem tanto de subjectivo para o leitor como para o escritor. Agora, por exemplo, estou a prestar interesse às minhas nostalgias televisivas...

    Quanto a tempo, arranja-se sempre tempo para aquilo de que se gosta e estou a passar quotidianamente pelo Altermundo...

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