07 março 2006

MARAVILHOSAMENTE DISCIPLINADOS

O Dr. A, administrador da empresa, pretendeu, certo dia, falar com o director Z. A secretária de Z, loura de uma forma a justificar a reputação da classe, informou a secretária de A que Z não estava, tinha saído para cortar o cabelo.

A desagradado, embora o assunto a tratar não fosse urgente, mandou deixar recado para Z lhe telefonar quanto voltasse. Consta que o diálogo entre os dois, mal Z regressou do barbeiro, decorreu ipsis verbis da forma que a seguir se relata:

- Com que então a cortar o cabelo na hora de serviço?!
- O cabelo também cresce na hora de serviço…
- Mas também cresce fora da hora de serviço!
- Por isso é que eu não o cortei todo…

Existe uma regra não escrita entre nós, portugueses, compartilhada com alguns dos povos latinos e mediterrânicos, que se pode mostrar indulgência quando um prevaricador mostra elegância e bom humor. Foi o que aconteceu neste caso.

Tivesse este episódio decorrido em terras germânicas e as probabilidades de que ele se saldasse por uma sanção a Z aumentariam exponencialmente. Este é um dos aspectos de que menos nos lembramos quando as visitamos e nos surpreendemos agradavelmente com a disciplina que mantém os passeios limpos e os transeuntes à espera do verde nas passadeiras.

Esta propensão para a disciplina, frequentemente confundida com o civismo, também pode ter o seu lado negro, quando mal dirigida. Todos os povos europeus têm os seus momentos de delírio, em que a populaça se junta ao poder para exterminar umas dezenas ou centenas de milhar. No entanto, esses processos desmoronam-se naturalmente pelo horror da violência que desencadeiam.

Foi preciso chegar ao século XX para, com o Holocausto, assistir a um extermínio montado metódica e disciplinadamente como duvidosamente mais alguém para além dos germânicos poderia ter feito.

Para além dos milhões exterminados, um dos factos que mais me impressiona é o gueto de lógica para onde se deixaram conduzir os intervenientes directos no Holocausto, com a justificação de que se limitavam a seguir ordens superiores. Foi uma explicação que se tornava incompreensível para as outras culturas europeias.

Haverá hoje uns 100 milhões de germânicos, distribuídos pela Alemanha, Áustria, Suíça, Luxemburgo e países adjacentes. Haverá, de certeza, uma imensa variedade de filosofias de vida e convém não cair no disparate de ver no vizinho que espera connosco o semáforo verde na passadeira em Hamburgo ou Munique, um potencial carcereiro de Treblinka.

Mas ver toda aquela gente ali apinhada, esperando em silêncio, enquanto não se vê um único carro no horizonte também não nos transmite nada de um à vontade saudável…