30 dezembro 2006

PROTOCOLO

Protocolo é o título de uma comédia norte-americana levezinha de 1984, tão levezinha quanto a reputação da sua protagonista, Goldie Hawn. A história do filme roda à volta de uma simples (empregada de café) que, por acaso e agradecimento, é recompensada com um lugar de destaque na administração em Washington. Tentando limitar os danos e não sendo ela qualificada em coisa nenhuma, acabam por dar-lhe um lugar no protocolo, função e palavra da qual ela nem conhecia o significado. O resto adivinha-se.

Mas, para os profissionais a sério da função o protocolo é um assunto muito sério e que deve ser respeitado. E em regimes republicanos, onde, ao contrário das monarquias, existe rotação dos titulares dos cargos, a sua importância cresce enquanto depositários do know-how protocolar, enquanto os recém-chegados vêm sempre impreparados para as minudências do cargo. Exemplo? Ninguém me explicou – e desconfio que não haverá grande explicação que se possa dar… - porque razão Maria Cavaco Silva e Maria José Ritta trocaram de cadeiras na assistência, simultaneamente com os maridos, quando da posse do marido da primeira…

Mas os piores inimigos dos profissionais do protocolo de todo o Mundo deverão ser os militares e mais aquele seu hábito desagradável de, volta e meia, promoverem uns Golpes de Estado que os torna ocupantes dos palácios presidenciais, para onde levam toda aquela rusticidade que os militares tanto gostam de cultivar. Cerimónias ritualizadas como a apresentação de credenciais por parte dos embaixadores tornam-se em momentos penosos e, por exemplo, tornaram-se terrivelmente famosas as fúrias de impaciência do General Gomes da Costa nos 22 dias que ocupou o cargo entre Junho e Julho de 1926.

Mas é do outro lado do Mundo que nos chega um exemplo recente do que pode ser a demonstração da obtusidade de um dirigente militar às subtilezas protocolares e do formalismo diplomático da sua nova função. Trata-se do caso do Comodoro Bainimarama, que, enquanto comandante das suas forças armadas, assumiu no princípio deste mês o poder nas ilhas Fidji, perante a oposição declarada da potência regional tutelar daquela área do Pacífico, a Austrália. Perante a manutenção dessa mesma atitude da parte australiana, o Comodoro, sem qualquer subtileza protocolar ou diplomática, afirmou que, caso a Austrália persistisse na mesma atitude iria buscar o apoio da China e doutros países asiáticos…

É óbvio que o Comodoro está a dizer que irá fazer o que é óbvio. Estando os Estados Unidos por detrás da Austrália, os únicos poderes que poderão contrariar as pressões dos australianos sobre as Fidji terão de vir de grandes países da Ásia. E isso só acontecerá se houver interesse nisso por parte desses mesmos países. Ou seja, uma situação muito similar à que é vivida por Timor-Leste. Com comentários tão claros quanto os do Comodoro a respeito da política internacional daquela região, ficam automaticamente identificados os grandes actores em presença. Não se dispensando naturalmente as verdadeiras análises à situação, fica logo dispensada a contribuição da superficialidade de um certo tipo de analistas…

ADOWA, TSUSHIMA, GALIPOLI

O mundo da década de 1880, quando algumas potências europeias decidiram repartir as terras dos somalis, era um mundo onde a ordem internacional era definida pelos países europeus – aliás, haviam sido eles próprios os criadores desse conceito quando aplicado à escala mundial – e onde a sua superioridade – sobretudo militar – se tornara, pelo acumular de resultados, num axioma.

É neste enquadramento que se tornaram mais importantes aqueles acontecimentos que contrariaram aquela corrente dominante, em especial os conflitos – ou suas fases – de onde as potências europeias saíram inequívoca e confessadamente derrotadas por países alheios a esse clube selecto. Ocorridos em décadas consecutivas, vale a pena relembrar os episódios de Adowa (1896), Tsushima (1905) e Galipoli (1915). Ainda hoje, se nota que os vencedores de cada um deles (a Etiópia, o Japão e a Turquia) gozam de um prestígio adicional por se terem oposto à hegemonia do homem branco.

Adowa (figura acima) foi uma batalha decisiva do conflito que opôs o exército colonial italiano e as forças etíopes na Primeira Guerra Ítalo-Abissínia (1895-96), quando os primeiros tentaram estender ao país dos segundos o seu Império Colonial africano. Inesperadamente, o superior enquadramento dos exércitos coloniais europeus, que lhes permitia derrotar inimigos que dispunham de mais do quádruplo dos seus efectivos*, fracassou neste caso com o exército italiano, e as suas formações desagregaram-se. A Etiópia conseguiu preservar a sua independência (o único estado africano a fazê-lo) - até à próxima Guerra Ítalo-Abissínia (1935-36)...

Por detrás das causas próximas para a Batalha Naval de Tsushima, que pôs termo à Guerra Russo-Japonesa (1904-05), estão as rivalidades dos interesses dos dois países em relação à sua expansão na China. E, por causa do sítio onde se travou a Guerra, não restavam grandes opções aos russos senão a de projectar o seu poder militar através da sua Armada, porque a hipótese de suportar um dos colossais exércitos russos no Extremo Oriente, sem que houvesse meios de transporte adequados para o sustentar, estava naturalmente excluída. Mesmo assim, houve que esperar meses para que a Armada russa alcançasse o Extremo Oriente e ali desse batalha à sua homóloga japonesa, que resultou numa vitória esmagadora desta última.
O desembarque em Galipoli tratou-se apenas de um episódio colateral (1915-16) inserido na Primeira Guerra Mundial (1914-18) e, ao contrário dos anteriores, não se tornou decisivo para o seu desfecho. Tratou-se de uma gigantesca operação anfíbia com um enorme apoio naval, que falhou. Em contrapartida, vale muito mais pela importância das potências europeias envolvidas (Reino Unido e França contra a Turquia) que, com o seu clamoroso fracasso, provaram o sabor de uma derrota que, nos episódios anteriores de Adowa e Tsushima, os seus especialistas condescendentemente tinham atribuído às ineficiências das forças armadas das potências rivais.

Do ponto de vista militar, creio que seria difícil juntar três batalhas mais distintas: houve uma batalha terrestre colonial clássica de desfecho inesperado, uma batalha naval clássica (o exemplo escolar da batalha dos couraçados movidos a carvão) e uma das mais extensas operações anfíbias montadas até então – associando aspectos terrestres e navais. Comentá-las mereceria um poste exclusivo para cada uma. O que as une é um outro aspecto completamente distinto: a exploração política que foi feita do seu desfecho por parte dos seus contendores. Etiópia, Japão e Turquia eram, depois delas, países com outro ânimo e com outro estatuto. Estes exemplos tornam límpido o que Clausewitz teria querido dizer quando escreveu, muitos anos antes destes acontecimentos, que a guerra era a continuação da política por outros meios.

*Estima-se que seriam cerca de 20.000 do lado italiano contra cerca de 100.000 (dos quais 80.000 armados com armas de fogo) do lado etíope.

29 dezembro 2006

QUANDO O DINHEIRO FALA CHINÊS

Já desisti de propor desafios arriscados aos leitores e deixei-me das ilusões que aqui também vêm leitores sofisticados como os do Abrupto que se manifestam maravilhados pela beleza da poesia matinal de François Villon, quando a lêem escrita no original, em picardo, o francês setentrional arcaico em uso no século XV… Simplificando, e sem passar trabalhos para casa, o senhor da fotografia do lado chama-se Wu Ping-Chien (1769-1843), também conhecido - por quem o conheça... - por Howqua.

Numa época (princípios do século XIX) em que, na Europa, se começava a ouvir falar das fortunas colossais resultantes das actividades comercial e bancária, onde os 4 irmãos Rothschild lançavam as bases da sua organização europeia (Salomon na Áustria, Nathan no Reino Unido, Calmann na Itália e Jacob em França), aquele que seria possivelmente o homem mais rico do mundo na época – à falta de uma lista anual como aquelas que a revista Fortune agora publica… – viveria em Cantão, na China.

E pertenceria também, como os Rotschild, a um poderoso clã de mercadores: o pai de Wu Ping-Chien era um dos raríssimos mercadores chineses que dispunha da autorização necessária para comerciar com o exterior. Uma actividade que permitiu aos Wu entesourar uma enorme fortuna em metais preciosos (especialmente prata), dado que as autoridades chinesas da época não se mostravam interessadas em adquirir ao exterior bens ou serviços que equilibrassem a sua Balança Comercial.

Diga-se, de passagem, que foi para atenuar este enorme desequilíbrio que os britânicos e a sua Companhia das Índias se lembraram de fomentar as exportações de ópio indiano – um produto que tem uma certa tendência para fidelizar a clientela… – com muito más consequências para a China: duas guerras – ambas chamadas Guerras do Ópio – perdidas em 1839-42 e 1856-60, com a correspondente assinatura de tratados, englobando a cedência territorial de Hong-Kong e a renúncia aos direitos comerciais nos portos mais importantes da China…

Mas, regressando à esquecida figura de Wu Ping-Chien, o homem mais rico do mundo do seu tempo, são várias as histórias associadas à colossal dimensão da sua fortuna: suportou por sua conta a reparação dos diques do enorme e importante rio das Pérolas – é o rio em cuja foz se situa Hong-Kong e Macau – ou contribuiu individualmente com mais de um milhão de dólares em prata para a indemnização que a China teve de pagar no seguimento da Primeira Guerra do Ópio.

Internamente, Wu viveu sempre sob uma pressão constante da elite dos mandarins, numa demonstração evidente que há sociedades onde o poder económico – mesmo descomunal – tem que se vergar ao poder político*. A sua maior ambição, para além da sua gigantesca fortuna, era que o seu filho mais velho fosse aprovado no exame de admissão a essa carreira e assim se viesse a tornar também num mandarim, desejo que nunca veio a ser concretizado.

Ultrapassado este pequeno interregno de 200 anos (quando medido pela escala da História da China), a economia chinesa parece ter retomado o seu hábito de ficar desequilibrada nos volumes das suas trocas com o exterior, reatando-se a actividade de entesourar, que outrora foi a imagem de marca da fortuna de Wu Ping-Chien, só que agora ela já não se faz em metal precioso, mas em divisas e títulos, sobretudo de origem norte-americana.

E, embora o possuidor da maior fortuna mundial seja actualmente o norte-americano Bill Gates, e a China (ainda) não possua, enquanto economia emergente, o equivalente aos nomes dos Tata ou Mittal da Índia, o nome de Zhou Xiaochuan, guardador do tesouro chinês enquanto governador do seu Banco Central, é um nome que já não se pode perder de vista, quando se fala em dinheiro, muito dinheiro…

* Veja-se o que aconteceu a Khodorkovsky, na Rússia, antigo dono do gigante petrolífero Yukos, e agora desterrado para uma cela de prisão na Sibéria por se ter oposto frontalmente a Putin…

UM CHEIRINHO A ANTÓNIO DAMÁSIO

Com a devida vénia a quem assina ITM no Corta-Fitas, que para ele chamou a atenção, eu quero recuperar um fantástico parágrafo da apresentação do Fórum para a Inclusão Social que se apresenta assim:

A experiência acumulada ao longos dos anos recentes, no âmbito nacional e internacional, aconselha que se avance no reforço de uma colaboração entre o sector público, privado e 3.º Sector, articulando um sistema de participação no diagnóstico de necessidades e no estabelecimento de prioridades que facilite a cooperação no desenvolvimento de objectivos e dando impulso a estratégias que tenham demonstrado ser eficazes para as políticas de acção social, especialmente as que se dirigem aos sectores mais vulneráveis da população, enquadrando formas de solidariedade cidadã, bem como facilitando e promovendo o aparecimento de novas alternativas como resposta a novas necessidades; tudo isto sem menosprezar ou inverter as responsabilidades que cabe a cada sector individualmente.

E o texto segue, na continuidade do estilo… Pior mesmo, só quem se lembrar (tiver lembrado?) de o aproveitar para o discurso inaugural, o que não seria um gesto inédito...

Eu lembrei-me de aventar aqui a hipótese científica, na mesma área que tornou famoso António Damásio e que me já havia ocorrido anteriormente em muitos outros textos deste mesmo quilate, que os traques sonoros e prolongados, quando produzidos em condições socialmente inconvenientes, poderão produzir muito mais sinapses cerebrais - o que quer dizer que despertarão muito mais atenção! - em quem calha ouvi-los do que a audição de quem profira inanidades deste teor num qualquer discurso oficial.

Eu bem sei que a metáfora poderá ser considerada de uma escatologia excessiva (será influência de Carolina Salgado e do tema da moda, os desconfortos de Pinto da Costa?) mas falhar-me-á o engenho de descobrir uma outra forma em que possa rebaixar tanto técnica como literariamente e de uma forma tão fulgurante quem teve a desfaçatez de escrever e quem se atrever a ler em voz alta em forma de discurso o que acho que não passa de uma merda sem qualquer substância…

28 dezembro 2006

LÁ, LÁ, LÁ




Ainda haverá quem se lembre de uma música festivaleira com o mesmo título do deste poste, que representou a Espanha no Eurofestival da Canção de 1968, cantada por uma mocinha chamada Massiel, e que acabou até por o ganhar contra a canção de um favorito Cliff Richards que até jogava em casa – o Festival realizou-se em Londres.

Talvez mais marcante do que a própria canção terá sido o vestido da intérprete, uma mini-saia muito mini, a terminar nuns folhos rendados e expondo um pujante par de pernas de camponesa que, embora de uma estética não muito feliz (a moça não teria corpo para usar aquilo…), fariam o delírio dos sonhos de muito camionista TIR apreciador do género…

Houve uma história por detrás da canção porque o intérprete original, seria o cantor de origem catalã, Joan Manuel Serrat que, por estar a ser considerado como um vendido pelos círculos intelectuais catalães mais radicais (por ter passado a cantar também em castelhano...), insistiu para que pudesse cantar a letra da canção – que não é particularmente complexa (*)… – total ou parcialmente em catalão.

Um tal pedido inusitado ocasionou um levantar de sobrolho muito discreto mas muito desagradado do generalíssimo Franco, uma recusa enérgica da administração da Televisão Espanhola (TVE), a substituição do intérprete da canção concorrente à última da hora por Massiel, a tal moçoila da mini-saia com folhos, e uma sanção de um longo período de ostracismo para Serrat na TVE.

Como bónus, aproveitando a oportunidade que o Youtube me oferece, faço lembrar que a representação portuguesa naquele Festival de 1968 esteve a cargo de Carlos Mendes, com a canção Verão, onde apareceu com uma jaqueta catita, mas a cantar com um ritmo um pouco acelerado e com uma atitude saltitona em excesso como a de quem parecia aflitinho para fazer xixi…


(*) Yo canto a la mañana
Que ve mi juventud
Y al sol que día a día
Nos trae nueva inquietud
Todo en la vida es
Como una canción
Que cantan cuando naces
Y también en el adios

La lalala lalala lalala
La lalala lalala la
La lalala lalala lalala
La lalala lalala

Le canto a mi madre
Que dio vida a mi ser
Le canto a la tierra
Que me ha visto crecer
Y canto al día en que
Senti al amor
Andando por la vida
Aprendí esta canción

La lalala lalala lalala
La lalala lalala la
La lalala lalala lalala
La lalala lalala
(Julgo que despensa tradução)

POR LINHAS TORTAS…




Se bem recordo uma história passada num país levantino – possivelmente o Egipto – no século XIX, houve um comerciante europeu lá residente que se viu acusado em tribunal de uma falta contratual com um comerciante local, em que o europeu se havia solenemente comprometido num compromisso que depois não honrara.

Apesar de ter contratado aquele que era considerado um dos melhores advogados locais, o europeu começou a ver a vida a andar para trás, quando, durante o julgamento, a acusação produziu uma dúzia de testemunhos corroborando que haviam presenciado o incidente (que nunca existira), sem que o seu advogado os interrogasse por sua vez.

Até que chegou a vez da defesa apresentar o seu caso, onde esta apresentou o dobro das testemunhas da acusação, confirmando o compromisso, é verdade, mas também como haviam sido testemunhas do momento em que o comerciante europeu o honrara em todos os seus pormenores. A defesa ganhou o caso e a reputação do advogado dali saiu muito reforçada.

Apesar dos Romanos serem famosos pela extrema atenção que dedicavam ao exercício da Justiça, entre os povos que vivem à volta do Mediterrâneo, território por eles fortemente influenciado e onde eles edificaram o seu famoso Império que durou vários séculos, parece existir uma espécie de dissociação inata entre o que pode ser a justiça e o que é a ética.

No exemplo de cima, no Levante, onde já existiam sistemas judiciais elaborados por anteriores civilizações, parecia existir aquela enorme facilidade para o perjúrio, apesar do gesto poder ser fortemente sancionado (com a morte, no antigo Egipto). Entre nós, uma boa síntese da nossa atitude pode obter-se naquele ditado popular que diz que Deus escreve direito por linhas tortas.

Já há muito que é evidente que alcançando o estatuto de dirigente de clube de futebol se fica numa espécie de santuário que impede as perseguições judiciais. Descobriu-o cedo Valentim Loureiro (Boavista), houve quem o redescobrisse mais tarde como Jorge Gonçalves (Sporting – a propósito, alguém sabe o que é feito dele?), quem o tentasse e falhasse como Alexandre Alves (Benfica – por causa da FNAC) ou o conseguisse como Vale e Azevedo (Benfica).

E essa evidência reforçou-se recentemente ainda mais com a forma como (não) evolui este processo a que se deu o nome de Apito Dourado, envolvendo Loureiro, Pinto da Costa e todas as estruturas dirigentes da arbitragem. Se fosse para acontecer já deveria ter acontecido e esta nomeação de Maria José Morgado mais não parece que um gesto desesperado para o que parece fatal como o destino não o seja…

Estando praticamente esgotadas as expectativas de uma justiça razoável, o eficiente advogado levantino do nosso caso inicial possivelmente aconselharia que se optasse por uma abordagem mais arredondada do problema com um julgamento na praça pública com alguém que, na ausência de Deus, se dispusesse a escrever direito por linha tortas. E talvez seja assim que tenha aparecido aquele livro de Carolina Salgado.

Que, pelas descrições que se tornaram rapidamente públicas do seu conteúdo, parece ser um livro abjecto: narrar os problemas gastrointestinais de Pinto da Costa ou o corte das suas excrescências capilares nasais só merece o adjectivo de sórdido. E do melhor sórdido para merecer boa audiência junto das camadas populares, porque aqui há uns anos uma biografia arrasadora de Valentim Loureiro, ainda que publicada no Expresso, quase passou desapercebida…

É um facto conhecido que o mundo do futebol é um mundo sem regras e sem ética. Mesmo assim, é incomodativo transformar Pinto da Costa numa figura de um palhaço maldoso que se peida desmesuradamente... Mas, assim como o nosso advogado levantino respondeu a uma mentira com uma mentira ainda maior, também não posso dizer que fique com pena de que calhe a Pinto da Costa ficar agora à espera da rapidez da justiça, e que depois os caluniadores se escapem com uma balela como a pregada por ele no caso do árbitro Carlos Calheiros…

Assim como estamos, no caso improvável da justiça vir a funcionar, as duas partes (Pinto da Costa e Carolina) serão condenadas e tanto melhor! Entretanto, enquanto esperamos, as duas partes estão a ser condenadas por um outro tribunal - o da opinião pública. Reconheço que é um trilho perigoso, mas reconheça-se que deve haver algo de muito preocupante no conceito que a sociedade portuguesa tem hoje do funcionamento da justiça formal, quando há a sensação que é preferível haver esta justiça ad-hoc a não existir nenhuma...

27 dezembro 2006

UMA PEQUENA HISTÓRIA DOS SOMALIS E DA SOMÁLIA

Como acontece frequentemente nas histórias nacionais, a história da nação (Somália) e a do seu povo (somali) acabam por divergir ligeiramente, porque nem toda a população da Somália é somali, nem todos os somalis são cidadãos da Somália. A maioria das razões invocadas para as grandes disputas internacionais resultam de um daqueles factores, e este mais recente, envolvendo a Somália e a Etiópia, não é excepção.

Como também acontece frequentemente, a história dos somalis antecede em muito a constituição do estado que tem o seu nome. Há referências escritas – pelos árabes - às populações nómadas que são hoje conhecidas por somalis desde o final do primeiro milénio (século IX e X). Os comerciantes árabes, já instalados nas cidades litorais, viram-nos chegar e substituir os africanos bantos no predomínio das regiões do interior.

Sendo nómadas, note-se que somali é uma designação genérica que abrange cinco grandes grupos (Dir, Issak, Darod, Hawiye e Sab), que por sua vez se subdividem em clãs e estes em tribos. O cimento que reagrupa esta enorme heterogeneidade é a língua somali, um idioma falado por 10 a 16 milhões de pessoas. E a variabilidade desta última estimativa é também indicativa da instabilidade da situação em que se vive naquela região.

Pertencendo desde há muito à esfera de influência da civilização muçulmana – os Darod foram o último grande grupo somali a abraçar à religião muçulmana no século XVI – só mesmo nos finais do século XIX (na década de 1880) é que os europeus vieram a estabelecer as suas colónias em terras somalis. E estas acabaram por ser repartidas por quatro soberanias distintas, uma das quais nem era europeia: italiana, britânica, francesa e etíope.

Para franceses (Djibuti) e ingleses (Somaliland), o critério para a configuração das respectivas colónias foi o do estabelecimento de entrepostos marítimos à entrada do Mar Vermelho, que se havia tornado numa artéria indispensável, depois da construção do Canal do Suez, para a ligação marítima entre as metrópoles e as suas grandes possessões asiáticas: a Indochina francesa e a Índia britânica. Pelo contrário, para a novíssima Itália (unificada em 1861) a parcela da Somália que lhe havia calhado – a maior – era uma questão de prestígio.

Por conveniência do equilíbrio de poderes entre europeus, uma parcela do interior, semi-desértica, conhecida como o Ogaden, foi atribuída à Abissínia (hoje Etiópia), que foi o único estado africano a ter permanecido independente durante esta fase da partilha do continente* pelas potências europeias e que, como vemos por este caso, até se beneficiou com ela. Traçadas as fronteiras, a Etiópia ficou com a contar na sua população com uma significativa minoria somali (6%), para mais extremamente concentrada nas suas regiões orientais.
As ambições de reunificação pan-somalis foram um pretexto assumido pelos italianos em nome dos seus colonizados nas suas manobras para a anexação da Etiópia que, tentada uma vez em 1896 e culminada num indecente fracasso (foi o único registado em África…), só veio a ser concretizado em 1936 (com a reconfiguração da fronteira que se vê na imagem de cima da direita) para ser imediatamente desfeita com a derrota italiana pelos britânicos logo no início da Segunda Guerra Mundial (1941).

As duas maiores colónias somalis (a italiana e a britânica) reuniram-se em 1960 para constituírem a nova Somália independente. Todavia, quando a antiga Somália francesa, se tornou independente em 1977, com o nome de Djibuti, não se reuniu ao restante conjunto. O novo país poderia beneficiar da circunstância de se vir a tornar o porto de trânsito de todo o comércio etíope com o exterior por via marítima, na eventualidade da Etiópia vir a perder os portos da Eritreia, o que veio a acontecer em 1993, quando esta última região se tornou um país independente.

Tendo a relação entre etíopes e eritreus permanecido regularmente tensa desde aí, por causa de disputas fronteiriças que ficaram por resolver, Djibuti tem beneficiado por ter seguido uma política externa autónoma e distinta da dos seus vizinhos somalis que, além de uma dinâmica expansionista relativamente aos países vizinhos (Etiópia, Djibuti e Quénia), são também conhecidos por uma dinâmica permanentemente quezilenta entre os seus vários clãs. Tanto, que são um dos raros países do mundo onde não se reconhece a existência - porque não existe! - de uma autoridade central.

Estes recentes episódios que, mais uma vez, parecem pôr em confronto etíopes e somalis (há somalis dos dois lados do conflito) parecem ser uma combinação de disputas internas e externas a que há que adicionar o factor picante e moderno do extremismo religioso propagandeado por um dos lados, um movimento designado por União dos Tribunais Islâmicos que, para além de estar a tentar controlar o resto da Somália que ainda escapa ao seu controle, fez transbordar esse conflito para as regiões de etnia somali dos países vizinhos. Essencialmente, nada de realmente novo, talvez apenas uma refrescada cobertura mediática a respeito dos litigantes.

Fica um comentário final para a ironia do facto de ninguém contestar o carácter nacional somali das populações que habitam os territórios vizinhos que a Somália pretenderia anexar. Fosse esta disputa num continente como o Europeu e, segundo o princípio das nacionalidades, a razão pertencer-lhe-ia inteiramente. Contudo a Somália é africana, o continente em que, infelizmente para ela, questionar e redesenhar as fronteiras herdadas do período colonial seria a antecâmara de um apocalipse generalizado…

* O outro país a respeitar formalmente esse estatuto foi a Libéria, que era uma colónia norte-americana em todos os outros aspectos, excepto no nome.

Nota: O último mapa consta, em várias versões, da Wikipedia, onde ilustra a cobertura do actual conflito e onde se pode acompanhar a evolução da implantação das várias facções. Os riscos vermelhos representam as fronteiras internacionais.

TV NOSTALGIA – 24

Entre as séries de culto da TV que ainda não foram editadas em DVD traduzidas para português – se calhar, ainda bem, porque há mais natais… - conta-se a série policial Hill Street Blues de 1981, traduzida entre nós – não muito apropriadamente - para Balada de Hill Street. Considero a música do genérico muito bonita, o próprio genérico é excelente, mas pouco mais lá haverá que se assemelhe ao género baladeiro.

Os blues serão as fardas azuis dos polícias de uma esquadra de uma zona pesada de uma grande cidade norte-americana que nunca é nomeada. Para além de novas técnicas de filmagem (a câmara parece pertencer a um operador de televisão que procura seguir os vários acontecimentos que se desenrolam simultaneamente na esquadra) e o ritmo da história permanece frenético desde a reunião inicial das seis da manhã até à noite e à mudança de turno.

Sobretudo o que para mim é mais interessante é o aspecto sociológico dos bairros da área de intervenção da esquadra. Depois de terem passados décadas (50 e 60) a fingir que a América era composta apenas por americanos de classe média - como o Dick Van Dike Show e as suas sequelas que passaram em Portugal ou em Bewitched (Casei com uma Feiticeira) – as séries de televisão vêm a fazer uma inflexão na década de 70 (All in the Family) até chegarem finalmente aos seus guetos urbanos.

E a sociedade urbana norte-americana onde evolui a acção de Hill Street Blues não parece ser a american way pela qual o Super-Homem se dizia bater*… São guetos e respectivos gangs de negros onde se dissolvem alguns brancos pobres de origem rural, todos fruto do êxodo para a cidade provocado pela mecanização da agricultura a que se juntam os guetos e gangs dos hispânicos, fruto de um fenómeno semelhante do outro lado da fronteira meridional dos Estados Unidos.

Numa época em que na América o espírito era o de um gigantesco acto de contrição – ver poste imediatamente abaixo – a gigantesca falta de solidariedade colectiva que ali era mostrada pela sociedade americana (entre outras séries aparentadas), quando em comparação com os esforços de integração e solidariedade desenvolvidos ao mesmo tempo pelas sociedades europeias, contribuiu para pôr em causa se o modelo social americano deveria continuar a ser a referência do que na altura se designava por mundo livre.

Estava guardada para daí a 25 anos, com os motins das comunidades imigradas em França de 2005, a hipótese de que, afinal, não havia nenhum modelo satisfatório para a integração das comunidades socialmente excluídas… E há que reconhecer que este poste de nostalgia televisiva teve muito pouco… Prometo voltar às rosnadelas do sargento Belker, às obtusidades do tenente Howard Hunter, e ao tradicional conselho avuncular do sargento Phil Esterhaus: Hey, let's be careful out there!**

* O Super-Homem batia-se for truth, for justice and for the american way (pela verdade, pela justiça e pelo modo americano – de organizar a sociedade, deduz-se…)
** Vamos lá a ter cuidado!

26 dezembro 2006

O SÍNDROMA DA CHINA

Este filme de 1979 acaba por poder vir a ser visto como uma interessante curiosidade histórica, de uma outra época, e esse interesse resulta não apenas do facto dos actores usarem as calças à boca-de-sino e uma certa exuberância capilar tão em voga na segunda metade dos anos 70. O filme conta uma história que pode ser considerada o reflexo da sociedade de uma superpotência preocupada, de postura modesta e ainda combalida dos episódios de Watergate e do Vietname.

É a história de uma equipa de repórteres de TV (Jane Fonda e Michael Douglas) que presenciam um incidente grave quando realizavam uma reportagem no interior de uma central nuclear e do esforço posterior da administração desta de ocultar a gravidade do incidente perante a comunicação social e a opinião pública. Enfim, um enredo que é uma espécie de uma repetição decalcada do caso Watergate, só que com um descarado cariz ecológico.

Numa época como a actual, em que a Administração norte-americana se tornou reconhecidamente famosa por não ter aderido aos Protocolos de Quioto, e onde uma organização mundial do sector como a Greenpeace se tem esquecido repetidamente de montar operações mediáticas de demonstrações de ameaças ao ambiente em território norte-americano e envolvendo interesses dessa mesma nacionalidade, é saudável recordar como as coisas já foram diferentes.

Era uma época em que as grandes preocupações com o nosso planeta incidiam noutras facetas, como a utilização da energia nuclear e o perigo do crescimento exponencial da população. Actualmente, a população mundial continua a crescer (embora se tivesse desacelerado o ritmo de crescimento) e é muito superior à que era naquela época e já se fala em recuperar a utilização da energia nuclear em centrais de nova geração, dado os custos crescentes do petróleo.

Mas a percepção de quais são os problemas actuais que afectam o planeta mudaram: o aquecimento global e a mudança do clima é um deles, a possibilidade de uma mega catástrofe provocada pela colisão de um asteróide do espaço será uma outra causa de preocupação. Todos eles, os de agora e os de outrora, têm o seu lado sério, mas a forma como elegemos os problemas que se tornam nos medos que nos assombram também se torna num marco identificativo de cada geração.

Contudo há algo que parece sempre permanecer: a superficialidade científica com que os assuntos são geralmente abordados pelos média. O título do filme (O Síndroma da China), aliás uma expressão correntemente repetida, é a forma bombástica de referir a consequência da fusão de um núcleo de um reactor nuclear quando não refrigerado que, pela sua temperatura extrema (o urânio funde a 1132º C…), seria impossível de conter e devido ao efeito da gravidade faria um buraco no chão em direcção ao centro da terra…

O imaginativo que se lembrou de fazer reaparecer o núcleo fundido na China (daí a localização do síndroma…), para além de mostrar um terrível desconhecimento da geologia interna da terra que o núcleo teria de atravessar (onde as condições de pressão em temperatura são muito superiores às registadas no núcleo fundido...), esqueceu-se do pormenor que também há gravidade na China, o que impediria o núcleo de aparecer à superfície… Enfim, um verdadeiro caso do que os italianos designam por si no è vero è bene trovato...*

* Se não é verdadeiro, foi bem pensado…

25 dezembro 2006

SANTIAGO DO CHILE, 1974


Circunstâncias acessórias para a narrativa fizeram com que um dia, andava eu na faculdade, tivesse assistido a um documentário cobrindo uma tertúlia (julgo que as chamavam assim) do padre Josémaria Escrivá de Balaguer (agora Santo). Preconceitos aparte, foi engraçado e instrutivo seguir os seus diálogos com a assistência, tarefa facilitada porque, embora em castelhano e não traduzido, se tratava de um dos castelhanos sul-americanos, bastante mais fáceis de entender.

Embora tivesse ficado um pouco perplexo com o tipo de problemas colocados (um deles, recordo-me, envolvia o papel benfazejo do anjo da guarda…) era evidente o dinamismo cativante de comunicador nato do fundador da Opus Dei. Aliás, torna-se agora muito fácil ver para quem tenha internet como seriam essas intervenções públicas de monsenhor Escrivá diante de uma audiência, porque alguns trechos estão agora disponíveis através do You Tube.

Mas a minha grande surpresa estava reservada para o fim da tertúlia, quando monsenhor Escrivá a terminou pedindo a bênção de Deus para os distintos governantes daquele país. O país em questão era o Chile, estava-se em 1974 (era a data do documentário) e os governantes em questão pertenciam à junta encimada por Augusto Pinochet. Embora a Opus Dei se assuma como uma organização politicamente neutra, não haja dúvidas que considero aquele gesto do seu fundador politicamente muito significativo e nada neutro.

Note-se que o facto de não estarmos habituados a equacionar as opções políticas de Santos (devido à maioria deles ser tão antiga que nem se concebe o problema) não invalida que haja quem tenha sido canonizado no Século XX pela sua vida e por gestos que contêm um evidente significado político: a canonização do padre polaco Maximiliano Kolbe em 1982, que se ofereceu para morrer em lugar de um seu companheiro numa prisão nazi em 1941 teve a sua dimensão espiritual e a sua dimensão política.

Na sua existência terrestre, os Santos podem ter gostado de música ou literatura ou futebol, torcido pelo seu clube e feito as suas opções políticas. Aquele pedido de monsenhor Escrivá feito naquele dia em Santiago do Chile teve o significado político que teve, conscientemente feito pelo seu autor e passível de ser apreciado por terceiros. Eu não concordo de todo com ele, mas respeito-o. Note-se que isso não o isenta que o critique pela opinião que ali expressou e note-se que esse mesmo respeito não é um sentimento que seja extensível aos seus discípulos que, tentando preservar ficções, procuram hoje esconder ou contornar aquele aspecto particular da vida daquele Santo.

24 dezembro 2006

MOURIINHUUU!!!!

Ontem o Chelsea, clube treinado por José Mourinho, ganhou o jogo contra o Wigan por 3-2, depois de estar a vencer por 2-0, ter permitido o empate, e com o golo da vitória a ser marcado mesmo no fim do jogo. Os comentários do treinador do Chelsea no fim do jogo têm tanto de emblemático sobre o perfil do treinador como de inusitado no mundo do futebol:

O Pai Natal deve vestir de azul porque não merecíamos ganhar. Não estou orgulhoso dos meus jogadores. A 15 minutos do intervalo já me cheirava a recuperação do Wigan, que teve uma atitude brilhante. Nós não merecíamos os três pontos e eles devem ter ficado muito desiludidos.

Embora se perceba o propósito desta recriminação pública que Mourinho pretende fazer passar aos seus jogadores, torna-se compreensível como é nestas ocasiões e com comentários destes, fora de tudo o que é tradicional no futebol, que ele ganha a margem de manobra para terem de lhe aturar todas as outras atitudes pelas quais se tornou conhecido. É o seu estilo, mas, ao desancar assim publicamente a sua equipa, vê-se bem que é mais difícil de copiar do que parece…

SOBRE A VARIABILIDADE DAS REGRAS QUE QUALIFICAM UM ABAFADOR DE BERLINDES

Aconteceu-me que, por circunstâncias da vida, quando passei da Segunda para a Terceira Classe, tivesse mudado de Escola. E que mudança! A primeira, donde vinha, ficava em Lourenço Marques, a segunda, para onde ia, ficava em Lisboa. E a adaptação a mudanças assim tão abruptas, sabem-no bem aqueles que as experimentaram, podem ser difíceis.

Algumas das mudanças são expectáveis e passíveis de compartilhar com os adultos. Outras, são-no bastante menos. Tendo saído de Moçambique a meio de uma temporada de interesse frenético pela actividade do berlinde (tradicional: depois podia seguir-se a temporada dos bichos-da-seda…) vim encontrar uma metrópole (como então se dizia) muito mortiça quanto a essa actividade.

Mas esse era o problema menor, porque, pela experiência, já me havia apercebido do fenómeno dos modismos nos recreios: o que hoje é popular – berlindes – amanhã pode ser substituído por outra moda – cromos. O problema grande era o de me estar a sentir desajustado por ter deixado de saber alguns aspectos das regras do jogo do berlinde, que julgava trazer dominadas de Moçambique.

Assim, um Abafador – que permitia ao proprietário abafar os berlindes em jogo e tornava um puto franzino com um deles no bolso numa ameaça temida – precisava de conter sete cores, além de uma risca (ou duas?). Mas esses eram as formalidades do outro lado do mundo. Aqui eles eram grandes bolas de um branco opaco, embora fosse indispensável a posse de uma pequena esfera de metal adicional: a licença.

Não juro pelo rigor das regras que descrevi, mas asseguro que o contraste era marcante. Mas havia padrões de comportamento que descobri serem intercontinentais: o proprietário do berlinde abafado precisava de ser mais pequeno do que o do Abafador ou, não o sendo, o proprietário do Abafador precisava de ter um amigo por perto que fosse maior do que o dono do berlinde abafado

Já se passou muito tempo mas não me recordo de nenhuma outra circunstância que seja uma metáfora mais perfeita daquilo que considero que caracteriza o frequentemente evocado Direito Internacional: como as formas do Abafador, as regras regulamentadoras da relação entre países são apenas instrumentais; o que é indispensável avaliar é o poder associado àqueles que as querem implementar – o tamanho dos donos, e dos países…

23 dezembro 2006

THE L WORD

A imagem de cima é a de um casal lésbico normal. No caso trata-se da filha do actual vice-presidente norte-americano, Mary Cheney e da sua companheira Heather Poe, que se tornaram hoje notícia porque uma delas engravidou. A imagem de baixo é de ficção, de promoção a uma série de televisão com índices elevados de popularidade onde todas as intervenientes principais da série são lésbicas.
Parece-me haver nestas duas imagens diferenças evidentes. Mesmo depois de terem sido acusadas de terem passado décadas a retratar imagens sociais de uma sociedade norte-americana que não existia, com casais e famílias sempre felizes e escondendo os restantes, parece que agora, pretendendo abordar temas pretensamente controversos em televisão como o do lesbianismo, os seus produtores parecem continuar a dar deles um desenho tão retocado, com tanta protagonista imaculadamente bonita, que continuam, agora doutra forma, a em quase nada corresponderem à realidade…

A BÉLGICA AQUI TÃO PERTO

Conversar com um belga e aprender as dificuldades específicas por que passam os habitantes de um país dividido por uma tão marcada barreira linguística é um exercício muito interessante. Uma das primeiras coisas que aprendi foi sobre a dificuldade, sem ser por contacto directo, de identificar a qual das duas comunidades – flamenga (de língua holandesa) ou valã (francófona) – pertence um belga.

Deduzi eu que, excluída evidentemente a aparência, o nome próprio e o apelido poderiam fornecer uma indicação sobre a comunidade a que pertenceria qualquer belga. Foi uma teoria logo desmontada com o exemplo da minha interlocutora que, apesar de ter um nome com a ressonância francófona de Hilde Detré, era (orgulhosamente) de origem flamenga.

Em contrapartida o campeão de automobilismo Jacky (Jacques) Ickx – e este é um apelido de sonoridade caracteristicamente flamenga – é um francófono de Bruxelas mas, por sua vez, o campeão de ciclismo Eddy (Edouard) Merckx* nasceu na zona flamenga da província do Brabante. E podemos finalmente apontar o exemplo de Georges Simenon como um francófono com nome disso.

Mas a família materna de Simenon era originária do Limburgo, província de língua flamenga. Muitos casamentos na Bélgica são mistos – como acontecia, aliás, com o da minha amiga Hilde – e uma proporção apreciável dos belgas são fluentes nas duas línguas nacionais, nem que seja passivamente, compreendendo perfeitamente aquilo que é dito na outra.

A partir de um certo extracto social, fugir a esta regra não escrita é considerado uma grande descortesia, como acontece com a actual Rainha Paula, a esposa de origem italiana do Rei Alberto II, que não é bem quista entre todos os flamengos porque não o fala, ou como a sogra da minha amiga Hilde que, fingindo não entender o flamengo, como que obrigava os restantes convivas a falar francês à mesa de Natal…

Ter deixado passar algumas destas pequenas idiossincrasias em claro justifica a minha opinião de considerar o livro Astérix chez les Belges como uma das obras menos conseguidas de Goscinny, que tantas vezes aqui enalteci, embora compreenda como o assunto linguístico e seus derivados sejam um tópico que muitos belgas não vejam com humor. Atente-se como foi a reacção a um recente programa de ficção da RTBF sobre a divisão da Bélgica.

Falando de clivagens vincadas, temo-las também, agora acentuadas, num partido político português, onde à coexistência das duas facções sob a mesma sigla (aliás, duas siglas…) nem se pode dar a designação de casamento de conveniência. É transparente como os órgãos dirigentes nacionais do CDS/PP só andam a perder tempo em exercícios de autoridade que não são acatados pelos seus deputados, a começar pelo dirigente do grupo parlamentar, Nuno Melo.

Já aqui mostrei não ter em grande consideração a argúcia de Nuno Melo, mas, se bem adivinhei o raciocínio que está por detrás das suas atitudes, ele até é defensável embora discorde da maneira como conduz a sua defesa. Para Melo exige apenas uma fonte de legitimidade, a daquele que ele considera que melhor consegue os votos – logo os lugares de deputado – para o seu partido: Paulo Portas, agora num período de interregno auto imposto.

Fora dos períodos eleitorais, existem uma espécie de comissões administrativas que tomam conta dos partidos da oposição com vocação governamental. Isto assim faz-me lembrar a resposta que obtive ao perguntar a outro amigo belga sobre o que mantinha a Bélgica unida. A resposta veio, simples: - O Rei Balduíno! (era o monarca na altura, falecido e substituído pelo seu irmão, Alberto II). Por cá, parece que no CDS/PP parecem estar sem rei… nem roque.

* Note-se como a página oficial da internet de Ickx está redigida em francês ou inglês, enquanto a de Merckx está apenas em inglês...

22 dezembro 2006

O TERCEIRO HOMEM

Reconheça-se que, dos três membros do elenco da QuadraturadoCírculo, programa da SIC Notícias, António Lobo Xavier é o candidato ideal para passar no meio dos pingos da chuva. Não se arroga a superioridade intelectual de José Pacheco Pereira, que cria os anticorpos bastantes para que, quando em falha, lhe caia tudo em cima, nem adopta aquela atitude, digamos, redonda, de quem todos conhece e é amigo, e que aproveita a ocasião para dali os saudar, que é a imagem de marca das intervenções expectáveis e, por isso, digamos, inócuas de Jorge Coelho.

Ora deu-se a coincidência que, de forma encadeada e em dois programas consecutivos tenham vindo à discussão assuntos sobre os quais Lobo Xavier assume posturas de um observador casual e desinteressado do assunto, como acontece com os restantes assuntos, quando isso talvez não corresponda rigorosamente à realidade. No primeiro caso, o do livro de Carolina Salgado e das acusações nele contidas ao presidente portista, Jorge Nuno Pinto da Costa, mais do que um fervoroso adepto, António Lobo Xavier é membro do Conselho Consultivo, o prestigiado e restrito órgão dirigente dos corpos sociais do FC Porto SAD.

É evidente que até haverá quem possa ser, entre as figuras públicas, ainda mais faccioso na análise daquela questão, basta lembrarmo-nos da de Miguel Sousa Tavares que, sem ser do Conselho Consultivo, mesmo assim dá conselhos – que Pinto da Costa se devia demitir – embora sejam para não serem seguidos. Contudo é evidente que a coabitação dos dois (presidente e conselheiro) num mesmo órgão de cúpula do FC Porto SAD é objectivamente limitativo daquilo que Lobo Xavier possa opinar sobre o assunto e era algo que lhe competiria evidenciar quando opinasse. Se calhar, esqueceu-se.

Mas este foi, evidentemente, um assunto menor – só mesmo em Portugal os assuntos associados ao futebol atingem as proporções que atingem – quando comparado com o desta semana, referente às apreciações sobre o pedido governamental à opinião de cinco juristas de nomeada sobre a constitucionalidade da lei das Finanças Locais. As opiniões de Lobo Xavier naquele programa sobre a razoabilidade do procedimento governamental contêm o distanciamento equivalente ao de um hipotético taxista instado a dizer o que pensará sobre os transportes públicos individuais: é que Lobo Xavier foi um dos juristas a quem o governo encomendou um desses pareceres…

Serão daqueles casos em que julgo que o mais correcto seria nem fazer quaisquer declarações de interesses. Devia fechar-se a boca e passar-se adiante para preservar a sua própria credibilidade para o futuro, ao mesmo tempo que se evitariam fazer figuras tristes no presente…É que, neste caso, até se chegou a ganhar um certo destaque ao lado de colegas de elenco que, como vimos ao princípio, projectam uma imagem mediática muito mais poderosa do que a sua… Mas se, pelo contrário, a questão tiver sido de busca de notoriedade, então António Lobo Xavier estará de parabéns. Venham outros pareceres!...

OVER THE TOP



Apesar de os homens já há milhares de anos se matarem nas guerras, o hábito de mostrar interesse pelos relatos pessoais daqueles que viveram as guerras é um fenómeno muito mais recente, datando possivelmente dos primórdios do Século XX e tendo a moda explodido com os combatentes e veteranos da Grande Guerra (Primeira Guerra Mundial – 1914-18).

Antes disso, lembre-se, apenas por curiosidade, a desdita de Fernão Mendes Pinto que, a pedido alheio, escreveu uma extensa história de aventuras, colando provavelmente diversas experiências que conhecera do mundo atribulado dos corsários asiáticos do Século XVI, apenas para que, concluída a narrativa num livro a que chamou Peregrinação, ficasse para a posterioridade com a fama de mentiroso…

Recorde-se que a Primeira Guerra Mundial na frente ocidental foi sobretudo um confronto entre franceses e alemães. Aliás, são deles os melhores livros de denúncia – O Fogo, do francês Henri Barbusse, publicado em 1916 – e de síntese – A Oeste Nada de Novo, do alemão Erich Maria Remarque, publicado em 1929 – sobre o que terá sido a experiência de ter combatido na guerra das trincheiras.

Mas ninguém consegue destronar os britânicos – os da metrópole e os dos domínios* - na forma como ainda hoje continuam a recordar os acontecimentos e a reverenciar os que morreram durante aqueles intensos quatro anos. Serão poucos os que se saberão que os mortos britânicos neste conflito (mais de 900 mil) correspondem sensivelmente ao triplo daqueles que se virão a verificar por causa da Segunda Guerra Mundial.

Sem terem a tradição de um serviço militar obrigatório, desnecessário e desenquadrado da tradição militar anglo-saxónica, o grande exército de voluntários constituído com o entusiasmo que se seguiu à declaração de guerra em Agosto e Setembro de 1914, foi a primeira ocasião em que as várias classes sociais produzidas pela revolução industrial se encontraram num mesmo sítio, sofrendo as mesmas provações.

Exprimindo-as, em prosa ou em poesia, há um conjunto reverenciado de autores de língua inglesa que escreveram sobre a vida (e a morte) nas trincheiras, como Siegfried Sassoon, Wilfred Owen, Rupert Brooke, Robert Graves ou o australiano Frederic Manning. Para países mais jovens, como o eram à época a Austrália e a Nova Zelândia, os episódios daquela Guerra, tornaram-se até actos fundadores da sua identidade nacional.

Para os britânicos, na iconografia da Guerra, nenhum gesto ficou mais marcado e tem hoje mais significado do que a saída das trincheiras (over the top) para o início do ataque às trincheiras inimigas. Na madrugada de 1 de Julho de 1916, mais de 100.000 soldados britânicos preparam-se para fazê-lo, no quadro de uma nova ofensiva que, após uma longa preparação de artilharia, havia eliminado as resistências alemãs em frente.

Ao fim da manhã desse dia havia mais de 57.000 soldados abatidos na terra de ninguém que separava as trincheiras dos dois contendores, 19.000 deles mortos ou agonizantes, e quase todos deles na situação de impossibilidade de evacuação por se encontrarem debaixo do fogo das metralhadoras alemãs que supostamente haviam sido neutralizadas pela artilharia e afinal não o haviam sido.

Mas as descrições tornam-se mais hediondas ao explicarem como, vaga após vaga, depois de se terem apercebido do que havia acontecido aos que os haviam precedido, numa mecânica automática, a que um sistema de comando completamente impreparado em termos de capacidade de informação ou de observação não conseguiu fazer parar, os homens saltavam das trincheiras, para uma carnificina inconsequente.

Mais de 60 anos depois dos acontecimentos, num filme como Gallipoli (1981, imagem da esquerda), do australiano Peter Weir (onde, numa cena impressionante, os homens deixavam os seus pertences pessoais pendurados em baionetas espetadas, antes do momento fatal) ou numa série cómica como Blackadder goes forth (1989, imagem da direita), com Rowan Atkinson** (que termina de uma forma muito pouca cómica…), as cenas do over the top, que se antecipam que venham a ser um suicídio organizado, continuam a impressionar fortemente.

São imagens pungentes como poucas, a mostrar a que limites pode ir a irracionalidade numa estranha forma de fazer a guerra... Aliás, não é em vão que, mesmo 15 anos depois de o programa ter sido emitido, esse mesmo último episódio de Blackadder goes forth tivesse sido votado no Reino Unido como o melhor episódio final de sempre de séries de TV…

* Canadá, Austrália, África do Sul e Nova Zelândia
** Mais conhecido pela série de televisão onde faz de Mr. Bean.

21 dezembro 2006

LAVRENTIY BERIA, O GEORGIANO AINDA MAIS IMPOPULAR QUE STALINE

Mau grado a ascendência georgiana de José Staline (que se chamava verdadeiramente Iosif Vissarionovich Djugashvili, 1878-1953) e apesar da Geórgia ser um país com uma história antiquíssima (desde há cerca de 4 mil anos), os georgianos sempre representaram menos de 2% da população total do Império Soviético. Mas, por efeito daquela cadeia de relacionamentos pessoais que é omnipresente em todos os regimes, os georgianos encontravam-se naturalmente sobre representados entre os órgãos dirigentes soviéticos durante o período de Staline.

Uma dessas figuras foi Lavrentiy Beria (1899-1953), um protegido do ditador, que emergiu em 1938 como o dirigente de confiança de Staline para todo o enorme aparelho repressivo da União Soviética (NKVD). Anteriormente, com Genrikh Yagoda (1934-36) e com Nikolai Yezhov (1936-38) à frente do NKVD, Staline criara o conceito (um pouco capitalista…), de torcionário mor descartável, ou seja, os responsáveis máximos pelas enormes purgas do aparelho que ele próprio ordenara eram rotineiramente substituídos, com o sucessor a submeter o antecessor ao mesmo tratamento dado às vitimas.

Terá sido por causa do engenho demonstrado por Beria ou apenas atribuível à mudança das circunstâncias (Segunda Guerra Mundial?), a verdade é que o georgiano escapou à lógica implacável dos dois anos de poder seguidos de desaparecimento e execução que afectara os seus dois antecessores imediatos. Muito à semelhança do que acontecia com Heinrich Himmler e a SS na Alemanha nazi, Beria tornou-se tão temido quanto desprezado entre os círculos do alto poder soviético porque não se lhe reconheciam qualidades intrínsecas que o tivessem projectado para o lugar que ocupava, a não ser uma fidelidade canina ao líder máximo.

A animosidade de sempre contra a pessoa de Beria ainda pode ser percebida num filme datado de 1991, ano do ocaso da União Soviética, e chamado O Círculo do Poder (The Inner Circle), realizado nos Estados Unidos por Andrei Konchalovsky, que retrata o círculo intimo do ditador a partir da visão do seu projeccionista de filmes (Staline era um cinéfilo). À falta de oportunidade de outra forma de atribuir no filme traços de carácter desagradáveis a Beria (Beria não se envolveria pessoalmente na violência exercida pelo NKVD), evocam-se os seus alegados – e crê-se que verdadeiros - vícios privados de pedofilia com rapariguinhas jovens.

Reconheça-se a Beria a habilidade de ter conseguido evoluir durante 15 anos como cortesão de uma corte de um déspota particularmente desconfiado, para mais conseguindo manter concentrado em si o poder de uma descomunal máquina repressiva composta por milhões de agentes (e ainda mais milhões de vítimas…). Com a morte de Staline, em Março de 1953, Beria tornou-se nitidamente o homem a abater, provocando uma coligação negativa de todos os outros ambiciosos: Malenkov, Molotov, Bulganin e Khrushchev. Em Junho Beria era preso e em Dezembro morria, fuzilado.

Num dos mais caricatos episódios de revisionismo histórico, daqueles que só na União Soviética se conseguiam inventar, todos os proprietários da Enciclopédia Soviética que puderam ser referenciados – incluindo os que residiam no estrangeiro – receberam uma folha adicional para substituir outra, num determinado volume da Enciclopédia, conforme era explicado numa carta que a acompanhava. Na nova folha, tinha desaparecido qualquer referência a Lavrentiy Beria. Em contrapartida, o artigo referente ao navegador de origem dinamarquesa Vitus Bering, que havia descoberto o Estreito e o Mar que têm hoje o seu nome ao serviço da Rússia, continha agora uma biografia que não descurava qualquer pormenor…

20 dezembro 2006

PERPÉTUA RODRIGUES, FILHA DO MAJOR SALEMA

Em A Maluquinha de Arroios, uma peça de teatro de André Brun datada de 1919, mas que foi depois adaptada para cinema e também várias vezes para teatro televisionado, há uma personagem secundária que passa o tempo a indignar-se com os enxovalhos a que é submetida, exteriorizando essa indignação ultrajada em frases como: Imagine-se fazerem-me uma coisa dessas a mim. A mim, Perpétua Rodrigues, filha do major Salema!

As pretensões da personagem estão condensadas naquela segunda frase. Resultante da época em que foi escrita, a graça pressupõe que um major seja alguém muito importante (na altura até era) mas o maior efeito cómico é obtido pela contradição entre o apelido da própria – na verdade uma modista pretensiosa, se bem me recordo - e o do famoso major, numa época em que a moral dominante fazia de filiação ilegítima um estigma.

Mas a frase fica no ouvido sobretudo pelo contraste estudado entre o que se ouve e aquilo que se estava à espera de ouvir. E agora, imagine-se lá que a causa de me ter lembrado da boa da Perpétua Rodrigues tem a ver com os patrulheiros da blogosfera! Que os há, não é novidade nenhuma. Há certos assuntos que já se percebeu, pelas reacções, que deverão ser continuamente pesquisados através dos motores de busca.

Por exemplo, beliscar um tema que seja caro aos comunistas aumenta exponencialmente as probabilidades que apareça inserido um extenso comentário contrário na caixa dos ditos, normalmente assinado por um nome banal, mas diferente de José Silva… Mas isso não será nada de que não se esteja à espera e é até aprazível de rebater, com excepção daqueles militantes que julgam que a militância ardente pode ser sempre um substituto para a ignorância do tema sobre o que se escreve…

Eu não contava era vir a descobrir comportamento semelhante, havendo quem patrulhe o nome de José Pacheco Pereira, para chegar ao meu blogue e nele inserir um comentário contrário à minha opinião. Inseri-lo, note-se, não é nada de mais, trata-se até de uma das funções mais saudáveis e que mais aprecio da blogosfera (o debate de ideias) e a minha resposta ao comentário lá está, incluindo até um pedido meu ao comentador que espero sinceramente que seja satisfeito.

Sendo já de si bizarro que alguém tenha assumido para si as penas de refutar as discordâncias que aparecem na blogosfera com aquilo que José Pacheco Pereira escreve, a minha surpresa cresceu ao verificar, numa segunda observação mais atenta, que o comentador que se assinou como Alberto Marques, Braga, estava a fazer as suas pesquisas e comentários e a aceder à rede a partir de um IP da telepac da região de… Santarém.

Escapa-me à imaginação as causas para que alguém que esteja em Santarém pretenda assumir que está em Braga (pseudónimos e secretismos sempre foram especialidades do PC) mas a verdade é que, em sonoridade, o episódio me faz lembrar a tal personagem de A Maluquinha de Arroios: Perpétua Rodrigues, filha do major Salema, e Alberto Marques, Braga, a escrever-nos de um computador instalado algures na região de Santarém…

19 dezembro 2006

O EURO E O DOLAR

Tentar explicar de uma forma simplificada a um leigo nos mistérios da economia os mecanismos que contribuem para a formação das cotações das moedas pode ser um saudável exercício para reavivar aos especialistas a modéstia nas virtudes e certezas das Ciências Económicas, se se quiser ter a honestidade intelectual de admitir como é ampla a parcela de pifometria empírica que contribui para a regulação dos câmbios entre divisas.

Vão muito longe os tempos em que se podia atribuir a solidez das moedas dos grandes impérios a critérios objectivos como o teor em ouro contido em moedas de referência como eram o solidus romano, o dinar islâmico ou mesmo, um pouquinho, o cruzado português. Os elementos constitutivos que fizeram a força das moedas dos impérios modernos, como a libra esterlina britânica e agora o dólar norte-americano são de uma complexidade extrema e contêm nela muito de intangível e interpretativo.

Que podem conduzir a situações difíceis de explicar. Deixem-me citar um exemplo, antigo de cinquenta anos, acontecido com meu pai, que na altura fora colocado na Índia portuguesa e que passou em trânsito no porto de Aden, que era na altura uma colónia britânica no Sul da Arábia*, onde lhe aceitaram as rupias da Índia portuguesa para cambiar, embora o recusassem fazer às da União Indiana (as moedas tinham a mesma designação).

Aparentemente, apesar da sua situação económica**, a moeda da colónia gozava, como por osmose, da reputação de solidez da da sua metrópole, em resultado das reservas em ouro com que o governo português saíra da Segunda Guerra Mundial. Mas olhando para a situação política em concreto, já naquela altura as relações azedas entre Lisboa e Nova Deli nada prognosticavam de bom para o desfecho do diferendo: dali por cinco anos a colónia da moeda boa ia ser absorvida pelo país da moeda má!

Este extenso preâmbulo ajudar-me-á a fazer perceber porque considero esta recente decisão iraniana de substituir o dólar pelo euro nas suas transacções com o exterior como um gesto onde julgo que predominará muito mais de componente política do que de obtenção de vantagens económicas para o decisor. Mas o decisor poderá não estar errado de todo. O dólar poderá estar numa tal situação de fragilidade que, decisões que, noutras circunstâncias seriam de interesse periférico como é o caso, poderão servir de detonador para outros acontecimentos, de consequências imprevisíveis.

É verdade que aquela parcela da solidez do dólar que estará associada à credibilidade dos Estados Unidos como actor internacional anda hoje pelas ruas da amargura, como acontece com a reputação da inteligência de George W. Bush e a razoabilidade das decisões da Administração norte-americana. E os Estados Unidos não estão apenas fragilizados no Iraque; no campo estrito dos indicadores económicos estão-no também nos deficits que registam na sua Balança de Transacções Correntes e no seu Orçamento.

Contudo, a moeda que parece estar a constituir o grande incómodo para os governantes norte-americanos não é o Euro, mas o Yuan chinês, como se comprova pelas suas pressões insistentes para que os chineses apreciem devidamente a sua moeda contra o dólar. Até agora com um sucesso moderado. Para os chineses o problema põe-se de uma forma diferente, quase antagónica, porque as reservas de divisas que a China tem vindo a amealhar ao longo dos últimos anos de prosperidade têm sido essencialmente em dólares.

Valorizar o Yuan conforme os Estados Unidos pedem, significa também desvalorizar (relativamente) o dólar e, consequentemente, desvalorizar o tesouro amealhado pelos chineses. Numa óptica dos interesses exclusivamente chineses, os norte-americanos nem deviam insistir com as suas pressões, já deviam saber a resposta. Mas, para se aspirar a ser potência global há também que pensar globalmente.

Os Estados Unidos cometeram um tipo de erro que poderá ser muito semelhante ao actual da China ao pensarem só no seu umbigo quando, na década de 1920, forçaram a manutenção do ritmo de reembolsos dos empréstimos de guerra das grandes potências europeias (they hired the money, didn´t they?***), acabando por prejudicar o seu próprio crescimento económico, ao limitar a capacidade aquisitiva dos mercados para onde exportava.

Tão parecida quanto as perspectivas militares futuras para o Iraque, também a divisa norte-americana está a viver um momento de equilíbrio frágil entre os desejos da superpotência vigente e os da superpotência rival em ascensão. Há quem garanta que a tensão pode ser corrigida gradualmente, outros crêem que não, e que o ajustamento terá que ser traumático. Sobretudo, é essa fragilidade da situação actual que obriga a não negligenciar episódios como o originário de Teerão que, noutras circunstâncias, seriam epifenómenos.

*Actualmente faz parte do Yemen.
** A colónia exportava apenas cerca de 20% do valor das suas importações.
*** Eles pediram o dinheiro emprestado, não pediram?, frase atribuída a Calvin Coolidge, presidente dos Estados Unidos (1923-29).

NOT SO EARLY MORNING BLOGS

Ainda a propósito dos meus NOT SO EARLY MORNING BLOGS e dos originais do Abrupto de José Pacheco Pereira, contendo poesias originais das mais diversas proveniências, de Portugal e do Estrangeiro, lembrei-me de um episódio que foi para mim muito instrutivo, envolvendo a demonstração do domínio de idiomas estrangeiros e o que é que isso pode significar, passado numa sessão de Apanhados do programa de Joaquim Letria, vai para uns vinte anos.

Creio que o programa do tipo dos Apanhados dispensará explicação, muito embora naquela altura ele fosse novidade na televisão portuguesa e as situações colocadas às vítimas parecessem ser muito imaginativas, o que constitui o grande segredo para o seu sucesso. Na que quero destacar, as vítimas iam entregar um rolo para revelação a uma loja de fotografias, quando a empregada, com o maior ar de loura burra, desenrolava um (falso) rolo e expunha os negativos à luz, enquanto constatava e informava com o ar mais casual do mundo: - As fotografias ficaram todas estragadas…

Houve outras reacções notáveis por parte das vítimas, mas a que quero destacar envolvia uma tia (embora a expressão ainda não estivesse em voga naquela época) que ia acompanhada de outra, numa conversa animada envolvendo Londres e Paris e o requinte supremo de lhe faltar vocabulário em português para se referir ao brilho de uma determinada fotografia, tendo de recorrer à expressão shinning. A aparência de tanta cultura desmoronou fragorosamente quando a loura burra fez a sua parte, e a tia, repleta de cultura estrangeira mas impermeável à cultura prática e elementar respondeu impávida: - Ai sim?

A loura bem lhe reabriu o rolo à luz repetidas vezes, mas a tia ali permaneceu alheia à destruição consecutiva das suas fotografias, que a sofisticação cultural dela só lhe dava para comentar aspectos da técnica fotográfica em estrangeiro, mas não para perceber os rudimentos mínimos sobre revelação de fotografias. Em suma, foi uma excelente lição como as aparências podem enganar e como há muito esperto que abusa da nossa atitude reverencial tradicional às coisas que vêm lá de fora, tipificada naquela frase embevecida da letra de uma canção de Rui Veloso: A minha namorada até fala estrangeiro

Adicionar José Pacheco Pereira a esta história até será, numa certa perspectiva, injusto; trata-se de alguém a quem reconheço interesses intelectuais dos mais variados. O que me intriga, e desde sempre me intrigou, é esta veia poética que ele parece demonstrar com as suas inserções quotidianas de poesia no seu blogue. Eu compreendo perfeitamente que a maioria das leituras que José Pacheco Pereira faça não sejam na sua língua materna – isso acontece a tanta gente obrigada ou mesmo de livre vontade! Eu concebo mesmo que haja quem prefira ler as obras de ficção (em prosa) de certos autores no original – as traduções sempre adulteraram o original.

Agora, quando toca a poesia, e a atentar nos cuidados postos no seu estudo quando se trata de poesia na nossa própria língua, é legítimo extrapolar quanto esse estudo exigirá de domínio de uma língua estrangeira para a devida apreciação da beleza do poema no seu original. Mesmo aí, isso até pode ser ultrapassado, porque creio que sempre pode haver quem se familiarize com um outro idioma para além do materno. Talvez mesmo dois. Só que, de memória, penso já ter visto naquele blogue, poesias em português, castelhano, francês, inglês, italiano…

Possivelmente José Pacheco Pereira pode ser um sobredotado ou afinal gosta apenas de afixar poesias do estrangeiro… Mas todos sabemos como, na gestão das imagens públicas dos intelectuais, dá sempre jeito haver um retoque de prestígio de artista de circo que faz coisas que os comuns mortais não fazem. Mais discreto e menos gozado do que o do seu rival, este gosto pelas poesias madrugadoras de José Pacheco Pereira afigura-se-me tão verosímil quanto os livros e as intermináveis leituras nocturnas de Marcelo Rebelo de Sousa...

18 dezembro 2006

POL POT – A HISTÓRIA DE UM PESADELO


É muito mais compreensível atribuir as responsabilidades de um imenso massacre a alguém individualmente do que a um colectivo. Mas neste livro de Philip Short, a história da vida de Saloth Sâr (1925-98), que ficou mais conhecido pelo nome de um dos seus pseudónimos de luta política, Pol Pot, serve sobretudo de chamariz de capa e de catalizador para a apresentação dos traços identificativos da cultura khmer onde pôde germinar o ambiente que mais tarde veio dar origem à morte (estimada) de um milhão e meio de cambodjanos.

Em rigor, como aconteceu com Staline e Mao, mas não aconteceu com Hitler, não se deve acusar Pol Pot e a restante equipa dirigente dos Khmers Vermelhos de genocídio: o extermínio incidiu sobre o seu próprio povo. Tecnicamente dever-se-ia acusá-lo de Crimes contra a Humanidade. Mas o que acho particularmente chocante no livro de Short – que resiste ao lugar comum de mostrar fotografias de caveiras empilhadas* – é a forma como se percebe como aquela mortandade foi o subproduto da construção de uma utopia social.

Nem mesmo nos horrores o Cambodja foge aquela lógica implacável que dá muito mais importância à História e aos personagens de grandes países – Ocidentais, de preferência. Entre aqueles que conhecemos melhor, vale a pena tomar atenção à forma como as sociedades que os geraram parecem estar a fazer a recuperação da imagem dos protagonistas dos gigantescos processos de morticínios que se verificaram no Século XX na Rússia (Staline), na China (Mao) ou na Europa (Hitler). Será imperativo que o tempo tudo faça esquecer?

Mas é nesta espécie de comentário fúnebre a respeito de Pol Pot, proferido por um seu antigo aliado (um Khmer Vermelho) de quem entretanto se tornara inimigo, que julgo que se condensa extremamente bem tudo o que Pol Pot era, com tudo o que foram (são?) os valores da vida humana da sociedade que dirigiu:

Pol Pot morreu como uma papaia que amadurece demasiado e que cai da árvore. Ninguém o matou, ninguém o envenenou. Está acabado. Não tem poder, não tem direitos, não é mais do que bosta de vaca. Até a bosta de vaca é mais importante que ele. À bosta podemos usá-la como fertilizante.

* Numa daquelas grandes ironias da História, aquele que seria provavelmente o mais conhecido sobrevivente do regime de Pol Pot, Haing S. Ngor (1940-96), actor que fora galardoado com o Óscar de 1985 pelo seu papel de repórter cambodjano no filme The Killing Fields, relatando precisamente os acontecimentos conducentes à implantação do regime de Pol Pot em 1975, acabou por morrer assassinado nos Estados Unidos, ao resistir a três assaltantes que entraram em sua casa...

A APOSTA - 4 (A CACHOLA - 2)

NOT SO EARLY MORNING BLOGS
I like beaucoup de banana
Because n´a pas de caroço...
(Anónimo)
*
Bom dia!
Descobrir que posso usar referências tão remotamente desconhecidas como José Pacheco Pereira é acabrunhante. Resta-me tentar fazer desse facto uma virtude, copiar-lhe o estilo, mas que me perdoem a falta de sofisticação para a poesia em estrangeiro, que eu, sobre esse tópico, sou um verdadeiro nabo!

A senhora da fotografia da esquerda do poste anterior chama-se Barbara Bain e talvez se lembrem dela um bocadinho menos encarquilhada quando tratava da saúde ao pessoal da Moon Base Alpha, quando a Lua andou a viajar por esse universo fora na série Space 1999. A sua fotografia foi retirada daqui. E a fotografia da esquerda é, evidentemente, de Lurdes Norberto.

E eu estou com uma cachola do tamanho da cabeça dos marcianos de Marte Ataca! E só me falta dizerem que também ninguém conhece esse filme...

17 dezembro 2006

A APOSTA – 3

Sob pena de ir de desilusão em desilusão, alguém me pode informar se reconhece estas duas pessoas que são aliás muito parecidas?
Ficar com a impressão que se usam referências ainda mais intelectualmente herméticas do que as empregues por José Pacheco Pereira é uma sensação esmagadora...

COMO MORREM AS ÁRVORES (TV NOSTALGIA – 23)


A propósito de obtusidade deliberada ao que nos cerca, ou mesmo que venha a despropósito, julgo valer a pena evocar aqui uma peça de teatro transmitida pela televisão pela primeira vez vai para uns quarenta anos. Chamava-se As Árvores Morrem de Pé e creio que se tornou, com o decorrer do tempo, um dos ícones do teatro televisionado da TV, como que uma penitência das audiências que lhe roubou.

Filmada na perspectiva de um vulgar espectador que vai ao teatro depois de jantar, a apresentação da peça em televisão é precedida da respectiva viagem até ao teatro e de imagens de uma Lisboa à noite que já só existem na memória dos mais velhos, destacando-se a frota de táxis, que era quase toda composta pelos (na altura) novíssimos Mercedes 180 D, pretos de capota verde, bagageira arredondada e estofos (muito) duros de couro…

Mas se os táxis eram uma novidade, a relação algo cúmplice entre público e os actores mais populares já pareciam ecos de atitudes que estavam em vias de desaparecimento acelerado. A salva de palmas de quase fazer o teatro vir abaixo a saudar a entrada em cena da veneranda Palmira Bastos, a vedeta da peça, e antes de ela dizer umas linhas que fossem para a justificar, já soava a gesto deslocado, de uns outros tempos.

A história narrada pela peça é, de certa maneira, banal, mas até essa banalidade acaba por ter uma utilidade simbólica. Num jogo cruzado de fingimentos é a duplamente veneranda Palmira Bastos que leva a melhor, fingindo que acredita na encenação fingida que lhe prepararam. E daí a frase que remata a peça (recebida com uma estrondosa ovação!): Morta por dentro, mas de pé, de pé, como as árvores!

O nosso respeito cresce quando se descobre que Palmira Bastos tinha, na altura, 91 anos. E, por falar em nonagenários, do respeito que eles nos merecem e da forma como eles, aproveitando-se disso, conseguem dissimular a sua recusa deliberada às realidades, é daquela peça e do papel de Palmira Bastos que retiro o exemplo mais flagrante do que suponho devem ter sido os últimos anos da vida de Álvaro Cunhal…

16 dezembro 2006

CECI N´EST PAS UNE PIPE

Sinto-me um privilegiado porque este blogue anda a melhorar visivelmente de qualidade, embora a modéstia me leve a reconhecer que isso não acontece por causa da qualidade dos postes do seu autor, mas sim pela monumentalidade de alguns comentários inseridos na respectiva caixa. Os outros comentadores que me desculpem.

Aqui há uma semana foi um comentário de um pedantismo de uma grandiosidade homérica, que já foi devidamente transposto orgulhosamente para o cabeçalho do blogue. Hoje é um outro, de um negacionista do holocausto que nos informa que O "Holocausto" é uma religião, não tem qualquer base racional, documental ou factual. Di-lo Flávio Gonçalves.

Eu bem sei que há graus distintos de negacionismo, desde os mais moderados, merecedores de atenção, que contestam porque consideram um exagero o número de seis milhões de mortos, ou então os que censuram o aproveitamento (vitimização) e empolamento subsequente dos factos, feito pelos dirigentes sionistas para forçar as potências a aceitar a imigração para a Palestina nos anos imediatos ao pós-Guerra. Depois, no outro extremo da razoabilidade, devem estar opiniões como a transcrita acima.

Empregar aquela frase como comentário num poste onde havia inserido duas fotografias com vitimas de campos de concentração é literalmente do mais surrealista que eu posso imaginar, a ponto de evocar o famoso cachimbo de René Magritte e a sua ainda mais famosa legenda Isto não é um cachimbo. Aqui também Flávio Gonçalves perante um documento (duas fotografias da época) diz: Isto não é um documento.

É uma atitude que, lamentavelmente, só pode pôr fim a qualquer eventual conversa. Ao contrário de Magritte, que o fazia nos anos vinte visivelmente numa atitude de desafio artístico, tenho dificuldade em classificar a atitude de Flávio Gonçalves (que não tenho motivos para considerar senão honesta) e não a posso imputar a outra causa que não seja algum distúrbio funcional na forma de perceber a realidade que o cerca.

É isso que me inibe de rebater em substância o comentário que me deixou, e não qualquer falta de democracia de que me acusa: O problema é que é proibido não acreditar... mas você certamente concordará com essa proibição! Engana-se. Mesmo sem as levar a sério, eu (e creio que a maioria das pessoas) defende que as pessoas que sofrem de perturbações do foro psicológico também possam emitir, como todas as outras, as suas opiniões em liberdade.

É uma atitude bem distinta daqueles senhores que fizeram aquilo que Flávio Gonçalves defende que eles não fizeram, que exterminaram todos as que sofriam dessas perturbações!...